10 junho 2010

A Cavalo dado não se olha aos dentes


Ou a carro emprestado não se olha a...

Na altura, eu trabalhava numa agência de aluguer de automóveis. Uma das minhas tarefas era levar ou trazer carros de um lado para o outro, normalmente em curtas distâncias.
Na altura, com alguns amigos tentávamos fazer sobreviver um jornal editado em Paris para portugueses. Um jornal com uma certa independência política, mas descaradamente de esquerda. Até na cor do papel era parecido com o “Comércio do Funchal”.

Eu não fazia parte do “corpo editorial”. Estava com tarefas de intendência, de divulgação – nunca tive veia de escritor. Havia poucos artigos assinados mas chegaram a aparecer as assinaturas do Soeiro Sarmento e do Abrantes do Carmo, já não me lembro de outras.

Um francês, antigo “porteur de valises” era o director (de nome). As reuniões faziam-se no quarto de um ou na casa de outro.  Já não me lembro como alguém tinha cedido um pequeno apartamento num quarto ou quinto andar de um prédio velho da Rue de S. Maur. Era lá o local de encontro e igualmente o armazém das resmas.

Dali saiam os exemplares que eram vendidos nos mercados ou distribuídos em algumas livrarias. Lembro-me de ter sido eu a contactar a “livraria espanhola” da rue Monsieur le Prince, a do Ruedo Ibérico, perto da rue des Écoles e de uma livraria árabe perto do metro Buzenval.

Um dia de 1973 foi necessário ir buscar o segundo número à tipografia que era na rue Fontaine. Os outros não tinham carro, eu assumi a tarefa com a ajuda do João C. – creio eu,  para uma noite, tinha que pedir um carro na agência da rue du Faubourg S. Denis. Não se ia alugar um carro. Ficou o encontro marcado. Tudo ia correr bem, havia outro camarada que estaria na rue de S. Maur e nos daria uma ajuda.

À hora de sair, dirijo-me ao M. Jacques S. e pergunto-lhe se posso levar um carro para casa, sem lhe dizer ao que ia nem onde ia.
O responsável da agência em vez de me propor um dos carros de aluguer que se encontravam estacionados ali à volta, por vezes até à rue La Fayette, dá-me as chaves de um FIAT 124 coupé cinzento! Diz-me que os documentos estão no porta-luvas e que o carro é de um amigo e que incomoda ali no pátio. Tudo bem. Volante de madeira, cinco velocidades na caixa, era mais um carro para ir passear ao fim de semana do que ir buscar umas centenas de jornais à rue Fontaine ali para os lados de Pigalle.

Tudo correu bem. O carro tinha gasolina, a tipografia estava à nossa espera, o João C. estava à minha espera, os outros camaradas ajudaram a subir os jornais.

No dia seguinte, de manhã, entrego o carro, com mais uma dúzia de Kms e com um pouco menos de gasolina. Agradeço ao chefe da agência e retomo o meu trabalho.

Alguns dias mais tarde, à hora do aperitivo no pequeno café em frente à agência, o Jacques S. volta-se para mim e a sorrir diz-me que andei cheio de sorte com aquele carro. Pergunto-lhe porquê. Sabes? O dono do carro está preso. Tinha duas ou três actividades pouco legais. Para onde foste com o carro? – pergunta-me.

(E eu que tinha ido à noite, com o carro ali para os lados de Pigalle)

Disse-lhe onde tinha estado, não lhe disse o que tinha feito.
Ainda nos rimos antes de beber mais uma rodada.
Depois habituei-me a só andar com carros que sabia quem eram os donos. 

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