29 julho 2010

LEVALLOIS


Durante os vinte e tal anos que vivi em França vivi sempre em Paris com uma breve excepção que foi Levallois.

Já estava a trabalhar na Melexp de maneira regular e tinha obtido a “Carte de séjour” e a “Carte de Travail” – obrigado senhor Melidonian.

O Raul tinha-me arranjado um contacto com um amigo que trabalhava na MNEF. Era um tipo simpático, já não me lembro do nome dele mas um dia, mais tarde, encontrei-o nos corredores da Embaixada. Demasiado rápido para lhe poder falar.

O importante é que eu regularmente ia lá passando e ele dava-me os endereços ou os números de telefone das pessoas que alugavam quartos (o meu salário não dava para mais).

Um dia contactei uma senhora ali para os lados de Denfert. O quarto era maravilhoso e pequeno com entrada independente e tudo, serventia de cozinha e de quarto de banho, era uma viúva de um oficial do exército russo (branco). Ao fim de muitas palavras a resposta foi um grande não pois andava à procura de uma menina! Nem a consegui convencer dizendo que eu também tinha sido oficial de infantaria.

Ao fim de várias tentativas lá encontrei um quarto em Levallois na rue Camille Pelletan. Fui visitá-lo com a sobrinha da proprietária num fim de tarde outonal com um grande luar. O quarto até era grande!

Tinha para para aí um dois metros de largura por três e tal de comprimento. Sexto andar mas eu tinha boas pernas. Uma mesa e um armário. Cama não havia! Cortinas também não. O papel da parede estava um pouco sujo. Retrete? Não muito longe logo ali à mão no fundo do corredor.

Aceitei! Ao descer ela apresentou-me a Mme Truche-Mouche, a porteira como sendo o novo locatário do quarto. Pelo caminho combinámos a questão da cama. Eu comprava a cama e descontava do aluguer. Quanto ao resto tudo o que lhe interessava era receber o “mandat” pelo correio e todos os meses. Ficou o negócio fechado.

Fiquei lá alguns meses. Poucos. Tentei pôr a coisa mais ou menos em ordem. Comprei a cama (e respectivo colchão) junto à Gare de l’Est e trouxe-a de táxi para Levallois. A rue Victor Hugo estava pejada de pequenos comércios. Comprei um canivete, uns metros de plástico para servirem de cortina, uma bacia plástica (lavatório e banca), pincel e tinta na drogaria.

Aos poucos fui-me instalando. A Jo ofereceu-me alguma louça que tinha a mais e foi lá um dia e achou muito bonito, também arranjei um camping-gaz. A vista do quarto era para as traseiras, para o lado do Sena, que só adivinhava nos mapas – nunca fui até lá na altura. Tinha os comércios todos à mão. O metro Anatole France também estava a uma distância razoável para um jovem.

A semana passava com aquele ritmo costumeiro: Casa – Metro – Trabalho. No tempo livre dava uma saltada a Paris para encontrar os  poucos amigos. Ao sábado, se não trabalhava, metia a toalha, o champô e o sabonete num saco plástico e 40 passos adiante entrava nos “Bains-douches Municipaux”.

Atravessava Paris de Norte a Sul para ir até Lourmel para ir trabalhar. Já noite chegava a casa e pouca era a vontade de sair. Antes de subir fazia as compras. A lâmpada suspensa no centro do quarto era a única luz que havia à noite. Arrumava um canto da mesa para poder escrever meia dúzia de linhas à família. Um transistor fanhoso dava-me um pouco de música.

De manhã, ia buscar água ao fundo do corredor. Lavava-me, ia despejar a bacia, afastava o plástico da janela. Um grande pátio e uma magnifica vista sobre uma estação de serviço. Ao fundo chaminés de fábricas. Saía para o frio, saía para a rua. Metro. Impasse Thoréton. Boulot.



(continua)

26 julho 2010

CONCERTO





Em 200X já estava há alguns anos a vender horas de trabalho contra “recibos verdes” na Instituição. Felizmente que trabalhava no Porto e a representação local ficava numa freguesia limítrofe de Cedofeita. Tinha a meu cargo a coordenação das actividades culturais da mesma. Na realidade tinha que elaborar um orçamento anual e nunca sabia exactamente do que dispunha no início do ano. O senhor representante da Sede dizia uma coisa e eu devia executar. Mas tinha um título bonito.

Lá para fins de Setembro, o senhor representante chamou-me ao seu gabinete e disse que para o prestígio da Instituição se devia celebrar condignamente o Natal. Assim uma coisa em grande. A D. Augusta, a representante fiduciária, bateu palmas. (sim, sim). Fiquei à espera da ideia. Ia sair da monotonia de uma reprodução de actividades em direcção aos clientes da Instituição. Seria um bolo-rei gigante para entrar no Guiness?

O tempo era curto, mas eu estava cheio de entusiasmo. Antes que eu começasse a ir mais longe nesse caminho imaginativo, o senhor representante avançou logo com a ideia de um Concerto de Música Clássica na época de Natal. Voltado para mim, e aplaudido pela D. Augusta embevecida, expôs a sua ideia! Sim, um concerto de Natal!

Rapidamente, profissionalmente, disse-lhe que era necessário encontrar um local. Que o átrio de entrada da Instituição era demasiado pequeno para acolher um quarteto de cordas que fosse. E eu ainda não sabia quanto podia gastar até ao fim do ano para promover novas actividades.

Não havia problema, ele já tinha tudo planeado. Uma igreja. A igreja da Lapa! Ele ia telefonar já a quem de direito para reservar. Isso fazia ele, o meu papel era de simplesmente contactar o Conservatório Municipal de Z e de arranjar preço com eles. O senhor Representante Local até já tinha encontrado o programa. Um Requiem. O Requiem de Mozart.

Ele não obteve a Igreja da Lapa para a data pretendida. Eu não encontrei um conjunto ao preço que ele queria pagar. Eu não cheguei a ser cúmplice de um Requiem em plena época natalícia.

21 julho 2010

Natal 1972




Os últimos natais não tinham sido nada agradáveis. O de 1969, um Natal de despedida, uns dias depois Mafra me abriria os braços e os portões. O de 70, aquele que passei em Santa Margarida em companhia da Companhia. Entre o refeitório e a messe dos oficiais. O seguinte tinha sido o meu primeiro Natal  em Paris, frio apesar da presença da Geta.


No Natal de 72 já morava com a C. H. Ela tinha ido passar o Natal com a família e eu não tinha sido convidado. 


O Abrantes do Carmo naqueles dias de mais ou menos Natal tinha ficado lá em casa.  Já não me lembro como foi a consoada. Já não me lembro em que dia é que foi.

Não havia televisor. Eu já estava na cama do quarto a ler. O Abrantes estava a dormir no sofá da sala.  Já era tarde na noite e de repente alguém bate à porta! O Abrantes assarapantado. Eu, espantado. Levanto-me. Abro a porta. 


Dois tipos desconhecidos. Um mais ou menos da minha idade. Um bem vestido. Um em mangas de polo.  Perguntam pelo Abrantes.do género: “ O Abrantes está aqui?” Ele calça os sapatos e põe os óculos. Chega-se à porta. Inquieto? Lança-se nos braços do mais velhote.


Onde está a minha netinha? Onde está ela? Pergunta o Félix.  O Félix ainda não conhecia a Angela.


Alguns minutos ali em casa. O tempo necessário para enfiar roupa quente e o Figueiredo contar que conhecia o número da porta, que tinha perguntado à Piedade onde era, que tinham subido os quatro andares, que tinha batido à porta. Que nos tinha encontrado.


Dessa vez eu tinha um Simca 1100 do Chevalier. Lá fui deixar o Figueiredo a Montholon e depois seguimos depressa até Paris XV. 


Era um daqueles grandes prédios com alguns tijolos na fachada. Saímos do carro e o Abrantes entrou num longo corredor, o corredor das “chambres de bonne”.  Quase no fim, bateu a uma porta à esquerda. Chamou pelo nome da sogra. Nós, os outros dois, calados, eu, com uma coisa assim na garganta. O Félix caiu nos braços da mulher. A netinha estava a dormir. 


Deixámos o Félix e regressámos os dois para a rua de Rivoli. O reencontro quase seria perfeito e o Natal feliz se a mulher do Abrantes não estivesse em Caxias.

sobre as minhas histórias e as memórias

Por vezes é ténue a linha de separação entre a realidade e a ficção.

Algumas das histórias que estão a ser contadas podem levar o leitor a levantar esta questão.

Isso acontece com a minha leitora preferida. Mas aos poucos tem vindo a aperceber-se que aquilo que eu conto corresponde às minhas lembranças e está muito próximo da realidade de outros tempos.

É verdade que começo a abrir as gavetas da minha memória, e não é simples uma pessoa recordar-se de tudo. E escrever assim não é fácil para um tipo que durante muitos anos da sua vida se dedicou a elaborar textos de caracter técnico. Ainda ontem ela ouviu pela boca de outros coisas que eu lhe tinha contado de outra maneira.

Mas atenção, leitor(a). As histórias publicadas têm mais ou menos trinta anos. Os crimes já prescreveram. O nome das pessoas, por vezes são alterados.

Para os factos mais recentes e por respeito para com as pessoas que se cruzaram comigo decidi criar uma nova etiqueta: Ficção!

Continuo a admirar a pachorra daqueles que passam por aqui regularmente. 

20 julho 2010

Não li, não vi, mas ouvi falar

Hoje, e no Porto!

Línguas viperinas afirmam por aí, por essas vielas, travessas e outros locais, que o autarca do Porto recusou atribuir o nome de José Saramago a uma rua da cidade invicta.

Pelo meu lado, só espero que não o façam a uma rua de forma bizarra como a rua Dr. José Augusto Seabra ou a uma rua em "U" como a rua François Guichard! 

Bem sei que o José Saramago não nasceu ou viveu no Porto, mas recusar o nome para homenagear um Prémio Nobel é ... (o espaço em aberto é para o leitor completar com a palavra que mais se apropria à sua própria opinião).

Chegar aos livros

Nous lézards aimons les... (Raymond Queneau)




Tinha praí uns 15 ou 16 anos, talvez menos. O ti Mário deu-me autorização de aceder à sua biblioteca.

O ti Mário era meu vizinho no 93, não sei se já disse que os vizinhos mais próximos  eram todos tis para mim, sobretudo os que me tinham visto nascer.

O ti Mário vivia, como a maior parte dos solteiros naquela época no apartamento da família. Passava os dias atrás de um balcão de uma loja das ruas centrais da cidade. Quando não havia clientes, abria um livro, pousava as mãos sobre o balcão e lia. Na altura, tinha mais trinta do que eu.

A biblioteca do ti Mário era uma parede inteira do seu quarto mais uma estante sobre o guarda-roupa. Eu tinha ali uma mina de literatura. Sobretudo de literatura portuguesa. Num primeiro tempo foram os clássicos, o Eça, o Garrett e o Camilo que abandonei tão rapidamente como o Herculano, depois começaram a ser todos os outros. Ele não me dizia nada. Eu entrava no quarto a qualquer hora, trocava um livro por outro.
Foi assim que descobri os neo-realistas que não eram falados no programa oficial, foi assim que descobri também as primeiras edições do José Gomes Ferreira.

Foi assim que li o que muita gente da minha idade não lia. E não só da minha idade. A biblioteca do meu avô tinha livros encadernados comprados aos fascículos, livros sem eira nem beira que não me interessavam. O meu pai lia os livros da colecção Vampiro com o carimbo da biblioteca dos Amadores de Pesca Reunidos, às vezes apareciam também lá em casa outros policiais. Mas nessa altura o meu pai já não trazia livros para casa e o meu avô já não estava cá.

Depois, depois toda a gente dizia que eu era um nulo em Matemática. Que devia ir para Letras. E fui. Passada rápida pelo D. Manuel II onde o António Salgado Júnior seguia rigorosamente o programa e não dava confiança aos quarenta e quatro ou quarenta e cinco alunos que se alinhavam diante do estrado durante 50 minutos. Na altura o Óscar Lopes era professor de Latim!

-         Breve parênteses, um dos raros episódios de que me lembro desse ano.

Da minha turma o Grego e o Latim estavam desdobrados. Uma manhã todos os do pequeno grupo estavam à rasca porque havia ponto trimestral de Português naquele dia.  Pedimos ao Óscar Lopes para nos dar umas dicas sobre o programa.

Ele olhou para nós com aquele ar tímido e disse-nos que não podia ensinar Português. Mas se nós tínhamos dificuldades que podíamos estudar durante aquela aula. Escreveu qualquer coisa no sumário do grande livro e pôs-se a trabalhar.

Depois saí do D. Manuel II, fui preparar o sétimo ano como “independente”. Para não me afastar muito de casa, para não me afastar muito da “minha” Cedofeita, inscrevi-me nos cursos nocturnos da Lúmen, ali junto ao Hospital Maria Pia. O outro dia soube que o Externato Lúmen tinha fechado definitivamente as portas.

Aí encontrei uma professora que nos ensinava o programa mas também acrescentava algo de diferente. Era a Drª. A. E, nós, alunos do nocturno também já mais interessados noutras coisas do que as crónicas do Fernão.

Zás!

E uma manhã. Paragem.

Paragem cardíaca, o ti Mário não tinha acordado. O cangalheiro instalou o corpo na saleta da entrada. A ti Lai passou muito tempo a chorar. Os amigos enchiam a entrada e a saleta. Foi um cortejo de fatos pretos a subir e a descer a escada.

Os gatos pingados tiveram alguma dificuldade em descer o caixão pelos patamares estreitos.

O tio Mário ficou em Agramonte num mês de Março. No fim da tarde, tive aula de Português. Senti uma lágrima por trás dos óculos verdes. Tentei disfarçar com a mão na cara.

Depois, já não me lembro bem porquê – penso que foi aquela questão de haverem cursos mistos (homens e mulheres na mesma sala de aulas) – e as aulas recomeçaram mais acima na rua da Boavista no Colégio Universal. Tenho a impressão que foi aí que conheci o Dario.

E os cursos continuaram. Normalmente. Hoje, ao fim destes kms todos digo que fiquei apaixonado pela minha professora de Literatura Portuguesa.

Eu continuava a devorar a biblioteca do ti Mário, ia passando do Manuel da Fonseca ao Aquilino com o Cardoso Pires pelo meio. Nunca me interessava muito pelo Manuel Bandeira nem pelo Erico Verissimo, mas tentava perceber a realidade relatada pelo Jorge Amado. Sublinhava a História da Literatura do António José Saraiva e do Óscar Lopes. Lia o O’Neil e tinha como livro de cabeceira a Praça da Canção. Deixava de lado as antologias. Lia igualmente os Manuais de Filosofia e mergulhava nos Compêndios de História.

Falava-se nas aulas, por vezes, dos autores mais modernos. A professora tentava falar um pouco das correntes estrangeiras, dos escritores sobretudo europeus. Sei que a professora um dia me emprestou um dos livros da Beauvoir (por isso a referência ao Queneau que aparece em sub-título) em edição brasileira pois a portuguesa ainda demoraria anos a chegar. Já não sei se foram os Mandarins ou a Convidada.

Duas ou quatro vezes nos encontrámos naquela confeitaria ali na praça da República, em frente ao Café Novo. Foi graças a ela que também li pela primeira vez em português o Segundo Sexo. Em edição brasileira. Eram livros caros, na altura eu não podia chegar a eles. Foi também ela que me permitiu ler o Admirável Mundo Novo.

Ela era quinze ou dezasseis anos mais velha do que eu. Eu era um puto, pensava como um puto. Pelo meu lado foi tudo muito platónico.
Uma tarde, já fazia escuro. Sentados numa mesa junto ao vidro da montra que dava para a rua da Boavista. Ela enfiada num casaco três quartos cinzento, de espiga. Eu a olhar para os seus dentes através o fundo do copo. Devemos ter trocado de livros. Sem dúvida que eu estava influenciado pelos existencialistas. Ousei dizer-lhe.

Disse-lhe que gostaria de viver em Paris, de conhecer outra realidade, de saber como era. Tudo num tom muito sério. Penso que os filmes que eu via no Batalha adubavam esse meu sonho. Gostaria de lhe dizer mais coisas, talvez quando ela saísse do Colégio mas havia um senhor que a vinha buscar num ID 19. Devo ter fabulado coisas e situações. A Dra. Adília voltou-se para mim e disse que eu era um diletante! Que eu nunca seria mais nada que um diletante, que eu nunca iria a Paris e ainda menos lá viver. Assim com um sorriso. Respondi que não, que talvez um dia tentasse fazer qualquer coisa como isso.

O ID 19 continuava a ir buscá-la no fim das aulas com um senhor de óculos de massa e escuros. Eu regressava ao 93 descendo a rua e depois na esquina da minha despedia-me do Artur Jorge que seguia até à rua da Ponte Nova.

Fiz a disciplina no final do ano. Deixei de ver a professora. Um dia, nas minhas andanças pelas tardes ociosas, entrei com o Aguinaldo noa Primus. Ela estava lá. Com chávena e livros à frente. Cumprimentámo-nos.  Falámos de banalidades. Fui tomar café com o Aguinaldo.

19 julho 2010

Mon Oncle d’Amérique




Faltavam-me ainda algumas horas para me encontrar com o Manuel. As voltas à volta da praça de Londres já me cansavam. Por acaso descobri que mesmo ali na Guerra Junqueiro passavam um filme do Alain Resnais. Tinha mais que tempo para ver o filme e para chegar a casa do Manuel ali para Benfica.

Lisboa estava a chegar ao fim. Só mais umas horas e a estrada esperava-me para mais uma etapa até ao Porto. Resolvi ir ver o “Mon oncle en Amérique”. E tinha a vantagem de ser uma versão original, como sempre legendado em português.

Fumei o último cigarro, entrei e como de costume encontrei um lugar na cochia. Tentei arranjar uma posição confortável. Há anos que não ia a Lisboa, praticamente já tinha resolvido os detalhes mais importantes que lá me tinham levado. Pus-me em mangas de camisa e fiquei a olhar para a tela, à espera.

Sinto uma presença no corredor e ouço um olá! Surge a Paula com um sorriso. Está ali com os pais e com o Hernâni, o namorado. Tinha-os encontrado no fim-de-semana anterior em casa da T e do marido. Volto-me para trás e aceno ao Hernâni, havia um espaço entre ele e um casal de velhotes simpáticos e sorridentes. E o Hernâni correspondeu.

Durante uns minutos a Paula ficou a falar comigo ali agachada. Tínhamos andado em bando por bares e jardins de Lisboa, em lanches e em jantares. Ela era jovem e sorridente, o Hernâni tinha trabalhado parte do domingo. Perguntou-me como eu estava. Quando partia para Paris. Agradeceu-me o almoço que tivéramos ali junto do jardim das Amoreiras.

As luzes baixaram para começarem os anúncios na tela.

A Paula levantou-se, já só com o feixe do projector a atravessar a sala e deu-me um beijo na boca.

Saí a correr do Londres pois já estava atrasado, não tinha tempo para ir beber uma imperial com eles à Mexicana.

Trocámos correspondência, cartas e postais, durante meses. Ficou chocada por eu lhe ter dito que a minha cidade era Paris. Mandou uma frase de contente pelo Mitterrand ter ganho as eleições presidenciais. Chegou-me a pedir boleia até Paris nas férias mas não chegou a concretizar-se. Mandei-lhe umas fotos do grupo em Montes Claros. Numa das últimas cartas que me enviou anunciava-me que resolvera fazer a viagem a Paris com o marido da T.

Em Outubro voltei a estar em Lisboa. Encontrámo-nos junto a um fogareiro de castanhas ali perto da estátua do Marquês. Entrámos numa confeitaria. Os cinco miúdos que me acompanhavam não estavam nem quietos nem calados.

Não lhe fiz perguntas. Ela contou que tinha passado no mês de Setembro em Paris e que tinham ficado num hotel onde havia ratos ali perto do metro Cadet. Ela tinha a minha morada, devia pelo menos saber o nome da rua onde, na altura, eu morava. Ainda a convidei a vir connosco até ao Cacém – disse que não estava disponível. Despedimo-nos já no metro como dois amigos. Não lhe cheguei a contar que tinha encontrado em Paris o marido da T. com uma secretária suíça e jantáramos juntos.

Ainda me lembro do nome da aldeia de origem dos pais da Paula!


(Encontrei, há uns dias, no meio das minhas cartas pessoais a troca de correspondência da altura) 

18 julho 2010

Amália Rodrigues e Camilo Castelo Branco




Mais uma história improvável no espaço e no tempo

Aviso à plácida leitora e ao plácido leitor: apesar de todos os improváveis, que nada têm a ver nem com o convento de Monchique ou outros lugares do Porto, a história é verdadeira. Por uma vez, o escriba deste blogue aparece como personagem (n. f.) central.

Numa noite invernosa difícil agora a situar no mês e no ano exacto a equipa dos docentes de Vitruve decidiram escolher um restaurante ali para os lados da Place d’Aligre para jantarem com o Henri Ourman, Inspector da Academia de Paris.

Os dez ou doze que éramos comeram bem e acompanharam a refeição com um vinho que merecia o apreço geral. Também houve alguns que preferiram beber só água, mas ninguém se opôs! Passados todos estes anos já não me lembro do menu mas sei que o que se comeu era fino e saudável. Sem dúvida algo que tinha a ver com a cozinha regional do sudoeste francês.

Depois dos cafés, já prontos para regressarmos aos nossos respectivos e diferentes lares, já com as botas a morderem a beira do passeio, o Inspector lança-nos os repto de nos oferecer um “coup d’étrier” pois  ainda era cedo e no dia seguinte não se trabalhava. Convite aceite!

Direcção: Rue des Canettes. ( Não quero desbobinar  agora e aqui tudo mas o “Chez Georges” conheci-o logo nos primeiros tempos de Paris, eu e o Raul íamos lá, à noite comprar uma lata de ravioli ou um litro de Kiravi. No andar térreo era uma mercearia, assim ao lado direito, quase em frente à porta havia uma escada com corrimão em madeira para a cave. Também havia um objecto fabuloso – um juke-box em madeira. Ficava sempre com os olhos dependurados nele. Discos de 45 rpm. Daqueles que eu conhecia alguns e doutros que gostaria de ter ouvido mas era mais importante a alimentação nocturna de dois vadios)

Lá seguiram as três ou quatro viaturas até à proximidade de Saint-Sulpice.  O Jean-Marc abria a marcha e os outros com medo de se perderem.

Depois de estacionados os carros na proximidade, na altura era fácil, lá nos encontrámos diante da porta de um restaurante húngaro, quase em frente ao Chez Georges. A porta (azul?) estava fechada e o restaurante sem luz. O Henri, conhecedor, abre a porta e dirige-se para a escada de acesso à cave. Música! Fala com um empregado.

Uma mesa perto do minúsculo palco foi-nos dada. Puxa banco daqui, trás banco de outro sítio lá nos conseguimos instalar.

No intervalo – os músico também tinham que descansar e molhar as goelas – o cantor vem cumprimentar o nosso Inspector. Apresentação geral dos membros da equipa. Quando chega a minha vez, mais uma vez, o português de serviço. O homem, de camisa larga, jubila. Oh! Mas Portugal! Ele tinha um sotaque da Europa Central. Portugal? Ele tinha no seu repertório uma canção da Amália Rodrigues!

E eu que não gostava da Amália, e eu que continuo a não gostar da Amália Rodrigues! A conversa e o intervalo continuaram. 

Continuámos a beber e a conversar baixo. A música recomeça. A pautas tantas lá vem uma da Amália com sotaque do Leste e ritmo cigano.

Durante a canção, da posição em que estava vejo descer as escadas de calcário uma personagem com um bigode camiliano, de fato negro debaixo de uma capa longa.

Pensei que a mistura do Kir, do tinto e do que estava a beber me estava a beber... me tinha causado alucinações! O Camilo Castelo Branco fazia uma aparição no momento em que um fado enchia uma cave de Saint-Germain.

Foram três ou quatro pessoas que se instalaram ao lado dele lá ao fundo, do outro lado da sala. No intervalo seguinte o anfitrião do sítio foi-me apresentar ao “Camilo” – deux portugais qui se trouvent sous mes  voutes avec Amália et sa musique, fantastique!

Há umas horas atrás contei este episódio à C. T.  Depois falámos um pouco das coincidências. Ela não queria acreditar.

Jurei a pés juntos da veracidade da coisa. De repente, lembrei-me de ter lido, de ter ouvido na rádio que o Mário Barroso tinha participado como actor, num filme do Manoel de Oliveira.

Saltei para a Net! Pesquisa rápida. Sim, era verdade. Francisca? Agora falta saber se ele teve cenas filmadas em França.  As datas coincidem! Teria sido mesmo verdade o que me aconteceu numa noite ali na rue des Canettes? Reencontros lusófonos num espaço parisiense?

16 julho 2010

Reencontros

Aqui há umas semanas, ali para o lado da Figueiroa, cruzei-me como António Alberto. Como ele olhou para mim, sorri. Olhei-o nos olhos.  Não parei pois ia com a C. T. Pouco tinha mudado nos últimos quarenta anos. A principal diferença eram os cabelos mais longos e brancos. Fiquei convencido que ele não me conhecera. Com mais dez ou doze quilos, com mais rugas e barriga, mais ou menos pelos brancos na cara, penso que estou muito diferente.

Dias mais tarde, semanas talvez, ao sair do meu fornecedor de pregos de nicotina que se encontra ali quase à esquina de Sacadura Cabral. Re-boum! Ele também ia acompanhado. Desta feita, parei.
És o António Alberto!

O tipo muito pronto: E tu és o Teodósio!

Seguiram-se as frases habituais do onde moras, temos que tomar café, abraço, etc.

Porra, o António Alberto reconheceu-me ao fim de mais de quarenta anos. Sei bem que tínhamos frequentado as carteiras do Meireles com Grego e Latim pelo meio e também aulas de Literatura Portuguesa na Lúmen. Das noites e tardes a rever matéria no Estrela, dos encontros na UNICEPE.

Um dia destes tomaremos um café!

Eu pensava que estava muito diferente, parece que não estou!  Estou mas é velho.

Por vezes, as pessoas não falam umas com as outras, vamos lá saber porquê. 

Como eu dizia o outro dia à Maria B.: O mundo é muito pequeno e o Porto é como um pires de café!

15 julho 2010

O Cinema e as coincidências



Hoje.
Circunstâncias várias levaram-me a pensar que devia criar uma nova etiqueta: O Cinema e eu.

Claro está que só as minhas memórias, espalhadas por diversas gavetas davam um blog.

À tarde, disse à Maria, com dois cafés à frente, que muito tinha aprendido durante dois anos sobre um capitulo que me faltava. A projecção em 35 mm! Aquela a sério, onde as caixas podem chegar a tempo ou ... então é a angústia (antes do jantar). Durante dois anos participei, vi, mas não toquei na película!

A bobine certa para a máquina que existe! A rebobinadora. O martelo para acertar a película! A janela adaptada ao formato.

Tanta coisa! Mas tem que ir devagar, muito devagar. Do nove e meio projectado sobre um lençol numa parede do 93 até ao 70 mm projectado no imenso écran do Coliseu. Já não vos digo, agora, que também passei pelo papel de figurante ou de arrumador num cinema ali para os lados de Saint-Séverin.

Muitos kilómetros, cinquenta e tantos anos.  Andar de projector no carro, levar o cinema onde ele devia ir.

E continuo um diletante!

Coincidência!

Na altura em que o país celebra os 100 anos do nascimento do senhor Henrique Alves Costa. E tanto silêncio.

Na altura em que se morrem os cinemas – as salas de cinema – na cidade do Porto. E tanta indiferença.

E eu considero-me cúmplice! Com a idade, com esta mania que eu tenho do conforto e da qualidade. Agora, cinema, só filmes escolhidos a dedo pela C. T. Da forma mais simples. Encomenda pela net (teia para os puristas), formato circular, suporte plástico, manipulação mínima! SOFÁ! Stout e cinzeiro à mão.
Assim vai a vida!

13 julho 2010

CALÇAS

Ou como não era fácil a vida nos meados dos anos 60 no Porto.

Comecei a ler “Pessoas, animais e outros que tais” (ISBN 989-625-085-5). Lá por volta da página quarenta, o Pedro faz uma alusão ao Jorge Lima Barreto quando da sua passagem na cidade do Porto.

Para quem não viveu nesses tempos, para quem nunca se apercebeu como era difícil viver num Porto burguês e fechado como o dessa altura, não sabe que o Jorge Lima Barreto foi o primeiro homem no Porto que andava na cidade de calças vermelhas. E posso vos garantir que tal atitude não era nada fácil. Os basbaques ficavam mesmo a olhar para as calças nas ruas da Baixa do Porto.

Existia na mente das pessoas um certo número de preconceitos difíceis de abater.

O ensino misto tinha deixado de existir nos liceus e nos colégios. Lembro-me de a Sala de Estudo Lúmen ter sido encerrada durante semanas ou meses porque os rapazes e as raparigas tinham aulas do antigo sétimo ano, juntos.

No espartilho social e ideológico era bem apertado. Espantem-se gentes que só têm memória do século XXI! Há quarenta e cinco anos atrás, as raparigas não podiam andar de calças compridas nos estabelecimentos do ensino oficial. Muitas vezes, no inverno, vestiam uma saia por cima das calças. As meninas do Liceu Carolina de Michaellis andavam fardadas com uma bata azul. Lá também era proibido o uso de calças às alunas.

Na sua autobiografia “ Foi Assim” ( ISBN 978-989-622-113) a Zita Seabra (a), que ainda tinha os cabelos longos, conta-nos que a sua primeira luta política foi o movimento que se gerou naquele liceu para que as alunas pudessem assistia às aulas com calças compridas.

A vida não era um mar de rosas, com calças ou sem calças naqueles meados dos anos sessenta do século XX. Eu sei que alguns até saõ capazes de dizer que naquele tempo a juventude podia e sabia divertir-se!




(a) - Na altura era dirigente da Comissão Pró Associação dos Estudantes do Ensino Liceal do Porto.

09 julho 2010

Casino




Naquele ano a Coordenação de Ensino tinha promovido um estágio no CREPS de Vichy, isto é, mais precisamente em Bellerive, ali mesmo do outro lado do rio, mesmo ao lado do hipódromo.

Foi o meu primeiro estágio fora de Paris e foi a primeira vez que puz os pés na Auvergne.

Como o estágio foi nos princípios de Julho havia já alguns colegas, sobretudo do Norte, já com as malas aviadas dentro dos veículos. O quadro exterior era bastante agradável, o ambiente interior nem por isso.

A equipa de formadores franceses teve alguma dificuldade em lidar com aquele grupo multifacetado. Encontrei algumas caras conhecidas e até mesmo amigos de longa data. Também havia algumas anedotas no meio daquilo tudo – uma colega recusava-se a tirar os sapatos para entrar no ginásio, outro coleccionava garrafas de vinho cheias à hora das refeições...

O tempo era pouco para visitar Vichy. Passei por Vichy e não fiquei a conhecer Vichy! Nem cheguei a provar a miraculosa água.

Como estava programada uma saída nocturna, houve logo um grupo de colegas que propôs como continuação uma ida à discoteca do Casino. Como eu nunca tinha entrado num Casino para jogar, integrei-me logo ao grupo das dançarinas.

Mas voilà! Havia um Hic! Eu só tinha dois pares de jeans como calças e no casino não eram permitidas! Dei a volta pelos colegas, comecei pelos do meu tamanho mas a coisa foi difícil. Por fim, o Pedro Órfão lá me emprestou umas calças em terylene. Puxei-as o mais para baixo de maneira a não ter o aspecto de ir regar a horta.

Éramos quatro ou cinco que entramos na sala de jogos. Os outros não quiseram gastar os cinquenta francos de direito a jogar ou não lhes interessava o espectáculo.   

Encontrado um cantinho na mesa da roleta lá começámos a distribuir as parcas fichas (de cinco francos?) sobre o tapete verde. Ora perde, ora ganha, as fichas iam desaparecendo – já não sei quantas tinha comprado – talvez cinquenta francos. Lá as ia distribuindo pelos números que mais perto estavam do meu braço. Chegou uma onda de sorte, o montinho à minha frente estava quase a chegar ao volume inicial. E eu a sentir-me ao estreito nas calças.

Eis que chega um tipo ainda jovem com ar que conhecia todos os empregado. Do pescoço aos sapatos de blue-jean! Mas devia ser de marca! Olha! Deixaram-no entrar. Observa um pouco a paisagem. Calmamente pousa um rectângulo de 500 francos numa das cores. Já não sei se o preto se o vermelho. Les jeux sont faits, rien ne va plus!
Saiu a cor contrária! O tipo afastou-se em direcção ao bar. Como nada se tivesse passado.

A minha onda de sorte continuava! Mais uma, mais duas. Cheguei ao capital investido. Já tinha no pensamento o lugar exacto onde ia colocar as próximas duas fichas quando a Angela histericamente começa a impedir-me de jogar. Já tens o teu dinheiro, vem embora! Até parecia que o dinheiro era dela! Perdi o ritmo. Não joguei daquela vez. Tinha vontade de a mandar à merda. Perdi a vez. Continuei a jogar. Perdi os cinquenta francos!

A Júlia com aquele seu sorriso e a sua calma toda levou-me até ao bar para eu descomprimir. Acabámos todos na discoteca do Casino. Depois uma alma caridosa  deu-me boleia até ao Centro de Estágios.

Anos mais tarde, nos fins dos anos 90, encontrei em S. Cibrão o Eugénio!  Parámos e falámos. Depois, várias vezes ainda o encontrei no Modelo de Vila Real. Veio à memória a canção do boieiro. O Eugénio estava na mesma. Para além da escola lá ia cultivando como um bom duriense.

05 julho 2010

Vizinhos 01

Logo depois da Ti Dó e do Ti Du terem deixado livre o alojamento do outro lado do patamar, foram para lá morar a D. Isabel e a Belita.

Eram as duas baixinhas (roda 24). A D. Isabel era muito beata e tia-madrinha da Belita. A D. Isabel era já velhota, tinha para aí a idade da minha avó ou do meu avô, lembro-me de ela me mostrar um caco velho que tinha sobre o louceiro da sala de jantar e me dizer que era uma granada que lhe tinha caído no quintal da casa onde tinha vivido. Eu olhava para aquele bocado de barro acastanhado com uma fitinha rosa desbotado e não percebia como uma coisa daquelas podia ser perigosa. (Agora penso que a granada devia ser da revolta do Porto de Fevereiro de 1927).
A Belita era, é, mais ou menos da idade da minha mãe e trabalhavam as duas na mesma empresa.

As duas às vezes frequentavam o serão do terceiro direito, por uma razão qualquer ou para tricotarem camisolas em lã ou em fioco para os “meninos” do Padre Grilo de Matosinhos. Enfim, eram como da casa naqueles tempos em que toda a gente se falava nas escadas ou vinham beber ao serão um cálice de Porto para festejar um acontecimento.

Corriam dias e meses tranquilos no prédio e na cidade. Eu lá ia crescendo mas era o benjamim do prédio e ninguém tinha explicações para dar às crianças. Eu também achava a situação normal.

Mas um dia, por uma razão obscura para o meu entendimento, a D. Isabel deixou o apartamento no terceiro esquerdo e foi viver para a Ordem. Tinha comprado um quarto vitalício com uma vista sobre os telhados e torre da igreja, ainda a lá fui visitar várias vezes com a minha mãe a caminho da missa, eram coisas que se faziam naquele tempo. E a Belita ficou a morar sozinha. Continuou a ir ali pela travessa de Cedofeita para o emprego, acompanhada pela minha mãe.

Outro dia, muito mais tarde, encontrei o senhor Cândido nas escadas. Acompanhado pela minha mãe já tinha cruzado várias vezes o senhor Cândido de regresso da missa ali na rua de Cedofeita. Alto, com as pernas magras, distinguia-se bem, apesar de vestido como os meninos que comandava, com um lenço ao pescoço.  Na altura a definição de um grupo de escuteiros era: Um grupo de meninos vestidos de parvos, comandados por um parvo vestido de menino.

Ainda mais tarde apanhei umas pontas de conversas onde era questão do Cândido e dos filhos do Cândido. Pois, o Cândido era casado e escândalo no prédio! O Cândido tinha vindo viver para a casa da Belita! Uma das vizinhas de baixo até deixou de ir às excursões da paróquia porque a Belita morava com um homem casado.

E o Cândido instalou-se no 93! Mudava as lâmpadas na escada, instalou móveis e plantas no patamar, etc. A minha mãe continuava a ir às excursões do padre até Fátima ou até Roma com eles.

Eu quando vinha ao Porto de férias lá o encontrava, sempre atarefado, sempre sorridente, a querer saber coisas da estranja.  Por vezes a tirar coisas do carro, outra a falar com a D. Hortênsia. A Belita até parecia mais feliz e mais alta.

Numas férias, ao chegar ao patamar encontrei-o vazio de móveis! O Cândido e a Belita tinham ido morar para outro sítio.

Depois? Depois, anos depois soube que o Cândido tinha falecido e a minha mãe continuava a estar em contacto telefónico com a Belita. Sempre amigas ao longe por fios interligadas.

A Belita tinha problemas de solidão, de forças de estar na vida como dantes. Como muita gente daquela idade tinha problemas com as senhoras que a ajudavam no quotidiano. As senhoras que passavam uma ou duas vezes por semana lá em casa nunca faziam o trabalho como ela queria.

E a Belita acabou num lar. Numa daquelas residências de luxo propriedade de um grupo bancário. Certo dia levei a minha mãe visitar a Belita. Ela estava agreste, contra tudo, contra todos. E, ou eu tinha crescido ou ela tinha minguado praí uns vinte centímetros. 

Uma amiga, talvez interessada pela colecção de selos e de pacotes de açúcar do Cândido, lá aparecia uma vez por mês para irem passear até a um restaurante ou irem comer um éclair à quinta do Paço.

A minha mãe tinha deixado de falar da Belita. Um dia perguntei-lhe porque ela não a convidava para saírem. Ao fim de tantos anos ela disse-me que a Belita era um estupor. Até se tinha atirado, sem vergonha a um homem casado. Disse-me que a Belita era uma pessoa de nariz no ar. Importante, já não queria passar pelas ruas onde vivera tantos anos.

A Belita lá continua na residência de luxo para reformados. Já deve andar só auxiliada por uma canadiana e por uma empregada para ir tomar café à pastelaria mais próxima. O Cândido espera-a ali no jazigo em Agramonte.

03 julho 2010

Marie Rose



Ainda morava em casa do Jo e da Jo. Uma noite o Jo estava a estudar numa ponta da mesa e eu a ler na outra.

A certa altura o Jo parou a leitura mas eu não me apercebi logo. Levantou-se e pegou numa lupa. Ao fim de alguns segundos disse: “tenho caspa que mexe!”.

Pânico! A Jo deu um salto até ao tecto. A Jo examinou a cabeça do Jo e o Jo examinou os cabelos da Jo. O Jo examinou os meus cabelos, a Jo examinou a minha cabeça. Catástrofe! O Jo tinha lêndeas, a Jo também, eu não.

Eu não sabia o que eram piolhos, lêndeas também não. Conselho de guerra. Depressa se desenhou um plano de combate aos insectos. Anteriormente eu tinha sido o suspeito pela introdução dos ditos animais – fui considerado inocente.

A Jo tinha vergonha de entrar na farmácia para comprar o líquido mágico e exterminador.  O Jo não queria ir à farmácia. Ficou decidido que seria eu a entrar sob a cruz verde para, timidamente, solicitar o remédio. Bem insisti. Bem argumentei com o meu francês básico que eu até não tinha nenhuma colónia dos ditos bichinhos.

Acabei por ser eu a ir pedir ao boticário a “Marie Rose”. O tipo com um sotaque de metéco, com a minha cara de pastor grego, aquele que não era conhecido pelos comerciantes do bairro.

No sábado seguinte lá fomos aos “bains-douches”, ali perto da Croix-Rouge, fazer a nossa barrela semanal. Daquela feita com “Marie Rose” para toda a gente. Foi nessa altura que fiquei a conhecer as propriedades mágicas da “Marie Rose”.

02 julho 2010

O King




Durante 21 anos, no Verão ía à praia. E a praia era a praia da Aguda. Tenho a impressão que fui todos os anos, talvez não todos, talvez não aquele em que fui para a praia “Emília Barbosa” (1956?)

Nos últimos anos, acabados os exames, lá ia eu bater à porta dos meus tios que alugavam anualmente uma casinha do senhor Manuel da Fonte ali na rua Joaquim Pereira de Sousa Grijó.  Depois, ficava lá em casa deles até eles regressarem ao Porto. Mas falarei da praia da Aguda noutra ocasião.

Calado, solitário durante aqueles meses eu ia tendo grupos diferentes segundo os meses de férias, eram raros os da minha idade que lá ficavam tanto tempo seguido. Em Setembro, para a casa da frente ia morar um casal com um dos filhos que era mais ou menos da minha idade. A “nossa” praia era a praia Sul – a mais recatada e a menos chique. Foi assim que conheci o Ernesto.

Durante uns anos (dois ou três) mantivemos um ritual nocturno. Os pais do Ernesto, por uma noite, cediam-nos a sala de jantar. Com o Osvaldo e o Fernando fazíamos a partir das tantas uma longa partida de King. Na verdade já não me lembro como aprendi a jogar. Jogava-se a tostão o ponto e a partida durava imensas horas.

Éramos quatro jovens entretidos numa noite de Setembro.  Éramos quatro jovens entretidos numa terriola adormecida onde não havia cafés e as distracções eram poucas. Falava-se baixo e não havia televisor nem música – os pais dormiam. Também não se fumava.

No fim da partida, íamos ver o nevoeiro no largo dos bombeiros. Calmamente percorríamos as poucas ruas, normalmente com a frescura e o silêncio ambiente. Lá para as tantas, depois de termos matado o tempo de espera, batíamos à porta da padaria, da única padaria que fazia pão nas redondezas.

Regressávamos a casa dos pais do Ernesto (cá para mim, eram uns tipos simples mas muito porreiros e avançados para aquele tempo). A mãe tinha deixado café fresco e manteiga. Ceávamos calmamente e depois começa o “leva a casa do outro” até que ...

Foi há mais de quarenta anos, não havia telemóveis e durante o ano perdíamo-nos na cidade, os nossos caminhos dificilmente se cruzavam. Do Ernesto mais nada soube. O Osvaldo quase me cruzei com ele no ano seguinte na “Tomada da Bastilha”, um dia reconheci-o num tele-jornal. O Fernando também ainda deve estar vivo também aqui há tempos o ouvi falar da sua associação profissional na televisão.

Eu ainda existo, mas já não me lembro das regras do King! Durante alguns anos ainda tentei arranjar parceiros para uma partida mas não consegui.