01 junho 2010

O Bolso Rasgado

No 93 morava a D. Hortênsia – mais tarde falarei nela.

A D. Hortênsia, aos domingos à tarde, recebia o Senhor “Cunha da Silva”.

O senhor Cunha da Silva, já naquela época recuada do século XX quando os anos sessenta despontavam era o Administrador da “Companhia”.

Lá para as 3 da tarde, quando metade dos proletas da urbe estavam a ouvir na rádio o jogo do Salgueiros, enquanto o estádio das Antas se enchia vagarosamente de sócios que ainda não eram dragões.

Lá pelas 3 da tarde, as sopeiras saíam para visitarem as famílias que habitavam os arrabaldes.

Lá pelas 3 da tarde, quando os magalas, inundavam o cinzento das ruas com as suas fardas verdes.
Penso eu que devia ser por volta das três da tarde. O Opel Kapitan parava à porta do 93! Fizesse sol ou caísse chuva. O motorista, que na altura andava vestido de cinzento como um “chauffeur”  (chófer) saía, dava a volta ao veículo, abria a porta do carro e a figura imponente do senhor Cunha da Silva.

Enquanto nos campos do Bessa ou no estádio das Antas os jogadores jogavam futebol, enquanto as sopeiras apanhavam os 15, o 9, ou outro qualquer, O senhor Administrador (hoje, amigo, seria o CEO) dedicava-se a outros prazeres  também lúdicos.

O prédio 93 já estava com quase 30 anos. Muito granito, muita madeira, verões quentes, humidades invernais já tinham dado de si.
Aquela escada era bonita, tinha altas janelas viradas para norte, as paredes estavam estragadas pelos caixotes de madeira que os marçanos subiam até ao último andar, um corrimão em madeira castanho avermelhado de madeira das áfricas ou dos brasis.
A D. Hortênsia até já tinha falado na hipótese de um elevador, de substituírem os degraus de pinho por uma alcatifa.

Mas naquela tarde de Primavera tudo era mais do que poesia, era a felicidade, o prazer que imperavam.

O Senhor Cunha da Silva, apesar dos lucros da Companhia achava que os inquilinos não mereciam obras naquele percurso escuro até aos respectivos alojamentos.

Era domingo o meu pai tinha ido à pesca, o meu avô lia a “Vida Mundial”. A minha avó a fazer crochet, a minha mãe a ver o tempo passar. Eu não sei aonde.

Ainda com o cozido familiar a pesar-lhe no estômago, o senhor Cunha da Silva, todo pimpão, sobe a escada, alegre e cheio de tesão! Para trás a Companhia, para trás a família! Era o rosa da Hortênsia que estava à sua frente.

Zás. Ia o homem tão apressado que para poupar as forças dos 60 anos faz a última curva, à esquerda, mesmo à corda como os carros de corrida na Circunvalação!

Zás! Engatou o bolso na madeira do corrimão. Zás! Respondeu o tecido inglês do fato escuro. O chapéu quase caía. A D. Hortênsia ia tendo um chelique!

Segunda ou terça-feira seguintes – já não me lembro bem – mesmo talvez durante vários dias, o carpinteiro, com serra, martelo, cola., jeito e saber arredondou todas as esquinas do corrimão até ao último piso.  Uns tempos depois apareceu um electricista que instalou lâmpadas em cada patamar até à porta da D. Hortênsia.

O senhor Cunha da Silva continuou a frequentar por alguns anos, aos domingos, a casa da D. Hortênsia, nos últimos tempos já era o motorista, sempre de cinzento, que o ajudava a trepar as escadas. A D. Hortênsia durou muitos mais anos, ocupou o apartamento até à sua morte.

Cinquenta anos depois, o corrimão ainda é o mesmo. Agora tem uma das esquinas, exactamente aquela, que se encontra deteriorada.

Não creio que um dia venha a ser reparada. O 93 ainda existe, ainda está de pé. A Companhia, agora, faz parte de uma SARL de âmbito internacional, os seus gestores já não sobem as escadas do 93. 

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