05 julho 2010

Vizinhos 01

Logo depois da Ti Dó e do Ti Du terem deixado livre o alojamento do outro lado do patamar, foram para lá morar a D. Isabel e a Belita.

Eram as duas baixinhas (roda 24). A D. Isabel era muito beata e tia-madrinha da Belita. A D. Isabel era já velhota, tinha para aí a idade da minha avó ou do meu avô, lembro-me de ela me mostrar um caco velho que tinha sobre o louceiro da sala de jantar e me dizer que era uma granada que lhe tinha caído no quintal da casa onde tinha vivido. Eu olhava para aquele bocado de barro acastanhado com uma fitinha rosa desbotado e não percebia como uma coisa daquelas podia ser perigosa. (Agora penso que a granada devia ser da revolta do Porto de Fevereiro de 1927).
A Belita era, é, mais ou menos da idade da minha mãe e trabalhavam as duas na mesma empresa.

As duas às vezes frequentavam o serão do terceiro direito, por uma razão qualquer ou para tricotarem camisolas em lã ou em fioco para os “meninos” do Padre Grilo de Matosinhos. Enfim, eram como da casa naqueles tempos em que toda a gente se falava nas escadas ou vinham beber ao serão um cálice de Porto para festejar um acontecimento.

Corriam dias e meses tranquilos no prédio e na cidade. Eu lá ia crescendo mas era o benjamim do prédio e ninguém tinha explicações para dar às crianças. Eu também achava a situação normal.

Mas um dia, por uma razão obscura para o meu entendimento, a D. Isabel deixou o apartamento no terceiro esquerdo e foi viver para a Ordem. Tinha comprado um quarto vitalício com uma vista sobre os telhados e torre da igreja, ainda a lá fui visitar várias vezes com a minha mãe a caminho da missa, eram coisas que se faziam naquele tempo. E a Belita ficou a morar sozinha. Continuou a ir ali pela travessa de Cedofeita para o emprego, acompanhada pela minha mãe.

Outro dia, muito mais tarde, encontrei o senhor Cândido nas escadas. Acompanhado pela minha mãe já tinha cruzado várias vezes o senhor Cândido de regresso da missa ali na rua de Cedofeita. Alto, com as pernas magras, distinguia-se bem, apesar de vestido como os meninos que comandava, com um lenço ao pescoço.  Na altura a definição de um grupo de escuteiros era: Um grupo de meninos vestidos de parvos, comandados por um parvo vestido de menino.

Ainda mais tarde apanhei umas pontas de conversas onde era questão do Cândido e dos filhos do Cândido. Pois, o Cândido era casado e escândalo no prédio! O Cândido tinha vindo viver para a casa da Belita! Uma das vizinhas de baixo até deixou de ir às excursões da paróquia porque a Belita morava com um homem casado.

E o Cândido instalou-se no 93! Mudava as lâmpadas na escada, instalou móveis e plantas no patamar, etc. A minha mãe continuava a ir às excursões do padre até Fátima ou até Roma com eles.

Eu quando vinha ao Porto de férias lá o encontrava, sempre atarefado, sempre sorridente, a querer saber coisas da estranja.  Por vezes a tirar coisas do carro, outra a falar com a D. Hortênsia. A Belita até parecia mais feliz e mais alta.

Numas férias, ao chegar ao patamar encontrei-o vazio de móveis! O Cândido e a Belita tinham ido morar para outro sítio.

Depois? Depois, anos depois soube que o Cândido tinha falecido e a minha mãe continuava a estar em contacto telefónico com a Belita. Sempre amigas ao longe por fios interligadas.

A Belita tinha problemas de solidão, de forças de estar na vida como dantes. Como muita gente daquela idade tinha problemas com as senhoras que a ajudavam no quotidiano. As senhoras que passavam uma ou duas vezes por semana lá em casa nunca faziam o trabalho como ela queria.

E a Belita acabou num lar. Numa daquelas residências de luxo propriedade de um grupo bancário. Certo dia levei a minha mãe visitar a Belita. Ela estava agreste, contra tudo, contra todos. E, ou eu tinha crescido ou ela tinha minguado praí uns vinte centímetros. 

Uma amiga, talvez interessada pela colecção de selos e de pacotes de açúcar do Cândido, lá aparecia uma vez por mês para irem passear até a um restaurante ou irem comer um éclair à quinta do Paço.

A minha mãe tinha deixado de falar da Belita. Um dia perguntei-lhe porque ela não a convidava para saírem. Ao fim de tantos anos ela disse-me que a Belita era um estupor. Até se tinha atirado, sem vergonha a um homem casado. Disse-me que a Belita era uma pessoa de nariz no ar. Importante, já não queria passar pelas ruas onde vivera tantos anos.

A Belita lá continua na residência de luxo para reformados. Já deve andar só auxiliada por uma canadiana e por uma empregada para ir tomar café à pastelaria mais próxima. O Cândido espera-a ali no jazigo em Agramonte.

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