Nous lézards aimons les... (Raymond Queneau)
Tinha praí uns 15 ou 16 anos, talvez menos. O ti Mário deu-me autorização de aceder à sua biblioteca.
O ti Mário era meu vizinho no 93, não sei se já disse que os vizinhos mais próximos eram todos tis para mim, sobretudo os que me tinham visto nascer.
O ti Mário vivia, como a maior parte dos solteiros naquela época no apartamento da família. Passava os dias atrás de um balcão de uma loja das ruas centrais da cidade. Quando não havia clientes, abria um livro, pousava as mãos sobre o balcão e lia. Na altura, tinha mais trinta do que eu.
A biblioteca do ti Mário era uma parede inteira do seu quarto mais uma estante sobre o guarda-roupa. Eu tinha ali uma mina de literatura. Sobretudo de literatura portuguesa. Num primeiro tempo foram os clássicos, o Eça, o Garrett e o Camilo que abandonei tão rapidamente como o Herculano, depois começaram a ser todos os outros. Ele não me dizia nada. Eu entrava no quarto a qualquer hora, trocava um livro por outro.
Foi assim que descobri os neo-realistas que não eram falados no programa oficial, foi assim que descobri também as primeiras edições do José Gomes Ferreira.
Foi assim que li o que muita gente da minha idade não lia. E não só da minha idade. A biblioteca do meu avô tinha livros encadernados comprados aos fascículos, livros sem eira nem beira que não me interessavam. O meu pai lia os livros da colecção Vampiro com o carimbo da biblioteca dos Amadores de Pesca Reunidos, às vezes apareciam também lá em casa outros policiais. Mas nessa altura o meu pai já não trazia livros para casa e o meu avô já não estava cá.
Depois, depois toda a gente dizia que eu era um nulo em Matemática. Que devia ir para Letras. E fui. Passada rápida pelo D. Manuel II onde o António Salgado Júnior seguia rigorosamente o programa e não dava confiança aos quarenta e quatro ou quarenta e cinco alunos que se alinhavam diante do estrado durante 50 minutos. Na altura o Óscar Lopes era professor de Latim!
- Breve parênteses, um dos raros episódios de que me lembro desse ano.
Da minha turma o Grego e o Latim estavam desdobrados. Uma manhã todos os do pequeno grupo estavam à rasca porque havia ponto trimestral de Português naquele dia. Pedimos ao Óscar Lopes para nos dar umas dicas sobre o programa.
Ele olhou para nós com aquele ar tímido e disse-nos que não podia ensinar Português. Mas se nós tínhamos dificuldades que podíamos estudar durante aquela aula. Escreveu qualquer coisa no sumário do grande livro e pôs-se a trabalhar.
Depois saí do D. Manuel II, fui preparar o sétimo ano como “independente”. Para não me afastar muito de casa, para não me afastar muito da “minha” Cedofeita, inscrevi-me nos cursos nocturnos da Lúmen, ali junto ao Hospital Maria Pia. O outro dia soube que o Externato Lúmen tinha fechado definitivamente as portas.
Aí encontrei uma professora que nos ensinava o programa mas também acrescentava algo de diferente. Era a Drª. A. E, nós, alunos do nocturno também já mais interessados noutras coisas do que as crónicas do Fernão.
Zás!
E uma manhã. Paragem.
Paragem cardíaca, o ti Mário não tinha acordado. O cangalheiro instalou o corpo na saleta da entrada. A ti Lai passou muito tempo a chorar. Os amigos enchiam a entrada e a saleta. Foi um cortejo de fatos pretos a subir e a descer a escada.
Os gatos pingados tiveram alguma dificuldade em descer o caixão pelos patamares estreitos.
O tio Mário ficou em Agramonte num mês de Março. No fim da tarde, tive aula de Português. Senti uma lágrima por trás dos óculos verdes. Tentei disfarçar com a mão na cara.
Depois, já não me lembro bem porquê – penso que foi aquela questão de haverem cursos mistos (homens e mulheres na mesma sala de aulas) – e as aulas recomeçaram mais acima na rua da Boavista no Colégio Universal. Tenho a impressão que foi aí que conheci o Dario.
E os cursos continuaram. Normalmente. Hoje, ao fim destes kms todos digo que fiquei apaixonado pela minha professora de Literatura Portuguesa.
Eu continuava a devorar a biblioteca do ti Mário, ia passando do Manuel da Fonseca ao Aquilino com o Cardoso Pires pelo meio. Nunca me interessava muito pelo Manuel Bandeira nem pelo Erico Verissimo, mas tentava perceber a realidade relatada pelo Jorge Amado. Sublinhava a História da Literatura do António José Saraiva e do Óscar Lopes. Lia o O’Neil e tinha como livro de cabeceira a Praça da Canção. Deixava de lado as antologias. Lia igualmente os Manuais de Filosofia e mergulhava nos Compêndios de História.
Falava-se nas aulas, por vezes, dos autores mais modernos. A professora tentava falar um pouco das correntes estrangeiras, dos escritores sobretudo europeus. Sei que a professora um dia me emprestou um dos livros da Beauvoir (por isso a referência ao Queneau que aparece em sub-título) em edição brasileira pois a portuguesa ainda demoraria anos a chegar. Já não sei se foram os Mandarins ou a Convidada.
Duas ou quatro vezes nos encontrámos naquela confeitaria ali na praça da República, em frente ao Café Novo. Foi graças a ela que também li pela primeira vez em português o Segundo Sexo. Em edição brasileira. Eram livros caros, na altura eu não podia chegar a eles. Foi também ela que me permitiu ler o Admirável Mundo Novo.
Ela era quinze ou dezasseis anos mais velha do que eu. Eu era um puto, pensava como um puto. Pelo meu lado foi tudo muito platónico.
Uma tarde, já fazia escuro. Sentados numa mesa junto ao vidro da montra que dava para a rua da Boavista. Ela enfiada num casaco três quartos cinzento, de espiga. Eu a olhar para os seus dentes através o fundo do copo. Devemos ter trocado de livros. Sem dúvida que eu estava influenciado pelos existencialistas. Ousei dizer-lhe.
Disse-lhe que gostaria de viver em Paris, de conhecer outra realidade, de saber como era. Tudo num tom muito sério. Penso que os filmes que eu via no Batalha adubavam esse meu sonho. Gostaria de lhe dizer mais coisas, talvez quando ela saísse do Colégio mas havia um senhor que a vinha buscar num ID 19. Devo ter fabulado coisas e situações. A Dra. Adília voltou-se para mim e disse que eu era um diletante! Que eu nunca seria mais nada que um diletante, que eu nunca iria a Paris e ainda menos lá viver. Assim com um sorriso. Respondi que não, que talvez um dia tentasse fazer qualquer coisa como isso.
O ID 19 continuava a ir buscá-la no fim das aulas com um senhor de óculos de massa e escuros. Eu regressava ao 93 descendo a rua e depois na esquina da minha despedia-me do Artur Jorge que seguia até à rua da Ponte Nova.
Fiz a disciplina no final do ano. Deixei de ver a professora. Um dia, nas minhas andanças pelas tardes ociosas, entrei com o Aguinaldo noa Primus. Ela estava lá. Com chávena e livros à frente. Cumprimentámo-nos. Falámos de banalidades. Fui tomar café com o Aguinaldo.