11 agosto 2010

O SAXOFONE



Um dia fui abrir a porta, à minha frente estava um tipo alto que me disse: “Sou o Luís. Sou um amigo do Bastos.”

À noite arrumámos as cadeiras para um lado e o Luís dormir lá várias noites no divan aberto. Era um tipo muito fino, um dia a beber chá por aquelas chávenas castanhas de “Duralex” disse-me que o chá tinha outro gosto em chávenas de porcelana branca! Ali só tinha a escolha entre as chávenas castanhas ou os copos transparentes em “Sedlex”.

Regularmente o Luís Reis passava por Paris. Ou na Primavera ou no Outono. Era um amigo. Ficava no divan e participava na vida da casa. Só ou acompanhado, já estávamos habituados a que ele não anunciasse a sua chegada. O Luís ia a Paris fazer compras, para ele e para os amigos. Por vezes, quando passávamos mais tempo no Porto lá lhe telefonava e íamos passar umas horas juntos.

Já tínhamos saído de Rivoli e morávamos ali bem perto do Delta. Num Setembro tinha dado boleia ao meu primo Rui e ao Tó. Tinham casa para acamparem, um ou outro jantar e só tinham que se desenrascarem para apanharem em Austerlitz o comboio de regresso a Campanhã.

E o Luís bate à porta e diz que vem passar uns dias a Paris. Para além dos discos da FNAC daquela vez o Luís foi à “rue de la Fontaine au Roi” comprar um saxofone soprano.

Durante um jantar o Luís lá nos explicou que andava a aprender a tocar o dito instrumento e que tinha aproveitado a ocasião para se abastecer na fábrica. Mas o Luís tinha um problema. Não queria levar o estojo na bagagem pois temia problemas na alfândega. O lindo estojo negro com um “Selmer” grafado dava realmente nas vistas. A solução passava pelos dois amigos que deviam voltar ao Porto de comboio.

Assim foi, o Reis tirou o instrumento de música do estojo em couro, limpou-o, guardou-o no paninho de algodão, tudo com muito método e preparou o estojo para o entregar aos dois jovens.

Trocaram números de telefone e marcaram encontro algures no Porto.

Só meses mais tarde é que o meu primo me contou as angústias da viagem. 


Estava tudo bem, tinham comido as sandes parisienses, tinham passeado no comboio de lés-a-lés, etc. Só quando estavam a alguns minutos da fronteira é que resolveram ir esconder um pouco melhor os eventuais objectos menos lícitos. Aí abrem o lindo estojo Selmer! Estava repleto de pacotinhos. Cheiraram, pensaram que era droga. Tornaram a cheirar. Era chá! Felizmente que a Guarda Fiscal não lhes abriu as bagagens! 

UM DIA DE VERÃO QUE SE ANUNCIAVA SIMPÁTICO



Hoje o dia até se anunciava agradável. Logo de manhã, ao despertar, nem muito sol nem muito calor.

Calço os óculos. Nariz fora da janela para ver como vai o trânsito! BOF! Apanho logo pelas narinas acima o grito olfactivo da Refinaria.

Porra quem foi o insecto que teve a ideia de construir uma refinaria logo ali a Norte. Se calhar era um tipo que não sabia que os ventos dominantes eram do Norte.

Deixa lá, la Puce, um dia também eu deixarei de mandar vir. Estarei demasiado velho para poder protestar!

À tarde, um velho a espernear sobre a calçada de Cedofeita. Quinze civis que o tentam abafar com o suor que lhes saía das coxas. Outros tantos a correrem para lá. Passo o meu caminho – nunca tive um diploma de socorrista. À volta  do “Pingo Doce”, braços carregados de líquidos, a ambulância bloqueada nos “pissos” junto ao Breyner. Cruzo-me com a equipa de dois INEMs que tentam acompanhar um velho cambaleante que se recusa a ir para a urgência.  

Noite, após um salto até ao Célia. Após dois príncipes. Ravel para a mão esquerda ... dirigido pelo Leo Ferré.

08 agosto 2010

MÉLI-MÉLO AUX EXPOS I


Depois da minha chegada a Paris, depois de resolver os problemas da legalização da estadia, a principal preocupação era encontrar trabalho. Sem trabalho não havia a possibilidade de me darem a famosa “Carte de Séjour”. Na altura não havia aquele velho problema de: “sem trabalho não há título de estadia, sem título de estadia não há trabalho.

O meu francês era um francês de trazer por casa apesar de um 12 no último exame que já estava longe. Ler, vá que não vá – os dicionários serviam para alguma coisa.

Indaguei junto dos amigos, nada pelo momento, desde que saiba de alguma coisa.
Outros aconselhavam ir bater à porta das fábricas lá para as zonas industriais. Algumas tinham um letreiro à porta: “Embauche”. Mas, francamente eu não me via a fabricar parafusos oito horas por dia.

Um dia a Jo disse-me que o marido de uma colega de chez Roucaire precisava de mão de obra! O Melidonian era dono de uma empresa de aluguer de móveis e de tempos a tempos precisava de mais gente.

Lá fui. O local era em Malakoff. Uma loja a abarrotar de mobiliário para aluguer. O patrão sempre engravatado tinha a seu cargo a parte comercial, mas quando era preciso algo de urgente deitava mãos à obra e fazia de tudo um pouco.

Nos primeiros tempos era “travail au noir”. Trabalhava tantas horas por dia e era pago no fim do dia. As tantas horas por dia eram sempre em função do trabalho que havia para fazer. Montar uma exposição era começar bem cedo de manhã e acabar quando todos os móveis estivessem instalados nos stands. Desmontar uma exposição era começar no fim da tarde e acabar quando os móveis estivessem todos no armazém. Acabado o trabalho, metia o dinheiro ao bolso e ficava a saber quando tinha de novo de me apresentar ao trabalho.

Na altura os salões e as exposições tinham lugar, quase todos, ali na “Porte de Versailles”. Ficava tudo à mão. O Bonnivard arranjava alguns amigos, o cunhado e amigos do cunhado. Uma vez ou outra eu convidei o Samuel e o Raul. Era um correr pelas alcatifas, entregar móveis aui e ali com uma planta dos stands. Depois o patrão passava para ver se estava tudo.

O ritmo era puxado mas eu era jovem. As mesas e cadeiras Knoll, os banquinhos em plástico, os frigoríficos, os armários iam mobilando os stands do “prêt-à-porter”, das grandes empresas electrónicas ou mesmo da “Foire de Paris”.

Pausa ao meio-dia. Almoço pago pelo Mélidonian. Da parte da tarde a montagem continuava. Depois, Metro – casa.

Se fosse a desmontagem lá estávamos nós, eu em segunda linha, o Bonnivard em primeira, e às vezes outros! À espera que os clientes acabassem de beber o último champagne ou que levantassem o material dos armários e recuperassem as brochuras. As minhas botas da tropa percorriam quilómetros durante aquelas horas. Sobretudo a preocupação de  trazer todos os móveis para o armazém. O patrão era simpático, sempre sorridente. Quando o trabalho acabava fora de horas pagava o jantar, algumas vezes, no “Charly de Bab El Oued” que ficava perto, ali na “rue de la Convention” – penso eu.

A Melexp desenvolvia-se como empresa. O trabalho não faltava mas aproximavam-se as férias. E quem diz férias diz salões e exposições parados, parisienses rumo ao Sul e rumo ao Sol.

Um dia, Jean Mélidonian falou-me ao lado daquela confusão toda, talvez fosse num daqueles dias em que tarde me levou até perto de casa no seu Autobianchi Primula. E disse-me que regularizava a minha situação como empregado. Sim, ele empregava-me. E eu teria direito a uma “carte de séjour” e à respectiva “carte de travail”. Era só que passassem as férias, dois meses e tal. Era só esperar que a G. viesse passar as suas férias a Paris.

(continua) 

05 agosto 2010

La Samaritaine – Armazéns do Povo



Quando cheguei a Paris a Samaritaine já fazia parte daqueles “Grands Magasins” que estavam parados no tempo. Os dois outros que cheguei a conhecer foram os do Louvre e o Bon Marché.

Eu sempre gostei daquele dédalo de lojas com passagens aéreas e corredores subterrâneos.

Logo quando cheguei, o Bastos tinha-me mandado pelo correio algumas moradas de amigos comuns que eu não tinha levado por questões de segurança. Alguns deles tinham moradas de correio mais ou menos fantasmas, o telefone era raríssimo. Contactei o Raul B. e o Luís V.

O Luís encontrava-o mais ou menos uma vez por semana ali no Châtelet, normalmente ao princípio da tarde no Zimmer. O Luís na altura militava nos grupos de emigrantes mais ou menos organizados, fazia teatro, eu não. Eu tentava conhecer a realidade na grande cidade. Um dia resolveu comprar um boné, achava que o boné o protegia do frio ou coisa que o valha. Foi a primeira vez que entrei na Samaritaine, naquele fabuloso mundo do consumo.

Vinha eu da Samaritaine, depois de ter comprado uns quilos de estearina para fazer velas na rue de la Grande Truanderie, em casa do Raul, quando encontrei a C. H.
Eu estava com o Marimba, ela sozinha. Eu de sobretudo cinzento. Ela com um casacão e um grande cachecol, devia vir do foyer da rue de la Cossonnerie. Foi na antiga rue Rambuteau, situo, hoje ali quase em frente ao Léon de Bruxelles.  Ela ainda hoje deve dizer que eu trazia um frango debaixo do braço. Não foi amor à primeira vista, mas eu estava com uma certa curiosidade em conhecer a francesa que falava português. Mas isso é outra história.

Quando morei em Rivoli a Samaritaine era o sítio onde comprávamos já fora de horas a alimentação e os produtos de drogaria, ou aquelas compras para a casa, sobretudo depois de o Louvre ter fechado.

Depois a Samaritaine foi perecendo só lá ia mesmo para encontrar coisas obsoletas difíceis de encontrar noutro sítio, ou então, para subir ao último andar e olhar para o Sena quase em frente do Pont-Neuf.

Quando estive em Paris com a C. T. a Samaritaine já estava fechada, nem pensar em lhe mostrar a vista daquele terraço. A Samaritaine estava morta!

Bom. E o título? O título tem a ver com uma história que me contou o Artur M.
O Artur como tantos outros da minha geração tinha partido para França sem grande informação da situação. Eram os anos sessenta, só conhecíamos o que nos era contado pelos turistas, o resto fazia parte do nosso imaginário. Atravessávamos duas fronteiras e encontrávamo-nos noutro mundo, noutra realidade. O Artur ao chegar a Paris a primeira coisa que fez foi comprar o “l’Humanité” num quiosque.
Poder comprar um jornal comunista!  Tentou decifrar as frases, as notícias. Vira uma página e encontra um grande anúncio da Samaritaine.



Anúncio no Humanité? Devem ser os grandes armazéns do povo, pensou ele. Talvez descontos para os trabalhadores com cartão do sindicato. 

Um dia, tirando algumas horas ao pouco lazer que tinha lá foi visitar o armazém. Foi assim que descobriu o templo do consumo!

02 agosto 2010

Desencontros fotográficos


O Albertino morava em S. Mamede e mandava fotografias por mail aos amigos. Uma amiga lisboeta, de gema, daquelas que só abandonava a grande cidade europeia para passar férias no estrangeiro, convidou-o a publicar as fotografias na internet.

A Albertina morava no Bonfim, tinha passado as férias com uma amiga numa terreola perdida da Beira Interior. A amiga tinha uma página na internet onde mostrava as fotografias de texturas e outras.

O Albertino um dia comentou uma fotografia da Albertina, talvez pensando encontrar o alter-ego do nome que o padrinho lhe tinha obrigado a usar a vida inteira.

A Albertina, ao recebeu o comentário, foi ver as fotos do Albertino. Achou graça ao nome. Havia um retrarto dele, de camisa amarela, no meio de muitas árvores.

O Albertino e a Albertina trocaram comentários, infeccionaram a publicação de fotografias. Começaram a escrever mails a torto e a direito. 

A Albertina gostava das fotografias do Albertino. O Albertino gostava das fotografias da Albertina. Mas nem uma, nem o outro, se manifestaram para o exterior. Eram comentários que apareciam na internet, naquele mundo virtual em que tanto o real não aparece, não existe.

Um dia a Albertina publicou uma fotografia da rua da Sovela. O Albertino gostou. Mas o Albertino não sabia onde morava a Albertina e a Albertina ignorava onde dormia o Albertino.

O Albertino escreveu um mail à Albertina a dizer-lhe que a queria encontrar. A Albertina também já desejava encontrar o Albertino mas tinha uma certa timidez. A Albertina ignorava tudo do Albertino. O Albertino também ignorava quase tudo da Albertina.

O Albertino marcou um encontro naquele final de Verão no café Aviz numa tarde de sábado. Dois fotógrafos da cidade mereciam encontrar-se para um passeio fotográfico. A Albertina aceitou, mas receou que o Albertino fosse um sátiro, sabe-se lá, há de tudo no virtualismo da net. Não quis estar a incomodar a irmã que tinha que se ocupar da filha.
Sexta-feira à noite, telefonou à Ana, com quem tinha passado as férias na Beira. Contou-lhe que tinha marcado um encontro com um desconhecido no Aviz. A Ana riu-se. “Vê lá, menina, são coisas que só acontecem a ti”. A Ana era mesmo muito comedida nos seus gestos e actos. E a Ana aceitou ir servir de guarda-costas. Combinaram tudo. Uma de um lado do café, junto ao balcão, a outra ao fundo junto do painel de azulejos.

À hora certa, mesmo um pouco antes, Albertina sentou-se, pediu um café cheio, pousou o Nikon D 200 na mesa e ficou à espera. Poucos minutos depois a Ana instalou-se numa mesa perto do balcão, abriu uma revista e esperou que lhe chegasse um chá preto num bule metálico – não havia chá verde!

Para o espanto de Albertina entrou um tipo despenteado, com um casaco com bolsos atafulhados. Olha para um lado, para o lado do balcão. Dirige-se para a mesa da Ana. Beijos. A Ana fica encarnada. Espanto da Albertina. O tipo pega na mão da Ana. A Ana nunca tinha dito á Albertina que tinha assim um amigo tão intímo. Nem mesmo durante os 15 dias de férias.

A Albertina ficou à espera. Não tinha o número de telemóvel do Albertino. Bem olhava para a montra. Havia tipos que entravam mas nenhum tinha uma camisa amarela nem um par de jeans como na fotografia que já tinha mais de 10 anos.

A Albertina pagou a despesa, saiu do Aviz. O tipo continuava com uma mão na mão da Ana. Dez minutos depois ligou para a Ana. Ela não atendeu.

A Albertina regressou a casa a pé, não passou pela rua da Sovela. Nem reparou que havia prédios fantasmas na baixa da cidade.

À noite falou-lhe. A Ana pediu-lhe desculpa. Tinha aparecido um velho amigo. Risos. Sabes? Também põe fotografias na net. É o TóZé! Tinham andado juntos no Alexandre. Era um bom amigo!

Teve um mail do Albertino. Pedia desculpa. Gripe da filha mais velha. Médico. Não tinha podido ir ao Aviz. Ficava para a semana?

Ainda há fotografias do Albertino no www.portugalimagens.net e no www.flickr.com , mas as páginas não foram actualizadas.

No ano seguinte a Ana não passou as férias com a Albertina. O Albertino deixou de responder aos mails da Albertina.

O TóZé nunca disse à Ana que também publicava fotografias como “Albertino” no flickr!

A Albertina continuou a fotografar texturas. Encontrou um Júlio. O Júlio não tem máquina fotográfica, tem uma aparelhagem em casa, não muito longe da rua da Sovela, e ouve muita música francesa. Vamos lá saber porquê!

01 agosto 2010

Potemkine!




O outro dia, li num jornal que me chegou às mãos que um grupo de jovens lisboetas divulgavam o cinema apresentando nas ruas da baixa pombalina filmes sobre um lençol.

O outro dia, ouvi um senhor com mais de 80 anos dizer na apresentação de um livro: Não estão cá os PIDES! A maioria das pessoas que lá estavam já tinham cabelos brancos, mas também havia bastantes jovens.

São dois momentos distantes no tempo. Mas ainda há gente que se lembra de um tempo em que era difícil muita coisa, mesmo ver cinema.

Agora é simples, é muito mais simples do que na segunda metade dos anos sessenta.

Agora, depois do café, de preferência, para aqueles que ainda tomam café. Plasma + Leitor de DVD + colunas de som. Uma vez ligados todos os aparelhos, introdução da rodela brilhante de plástico. Depois telecomando na mão e a coisa está a correr. Para-se quando queremos, nem que seja para ir abrir mais uma vez a porta do frigorífico.

Apesar do que alguns apregoam ainda por aí, a vida era difícil, o dinheiro pouco, o telefone raro e inseguro, a liberdade pouca ou nenhuma para alguns.

A primeira vez que vi o Potemkine, filme mítico num país amordaçado.

Tinha marcado encontro com o Raul, à noite, num café, talvez o Diu ali na Carvalhosa. Ele nada me tinha dito.  De autocarro ou de eléctrico, lá chegamos ao Carvalhido, ruas fora até à rua de Monsanto.

Hoje vamos ver um filme, tinha ele dito. Prédio recente, impessoal como todos aqueles que tinham crescido por aquelas bandas. Escadas de mármore, etc. A Odete abre a porta. Um estúdio pequeno, mobiliário contemporâneo. Já lá estavam o A. , marido da Odete e o Graça que eu mais ou menos conhecia das lides da UNICEPE.

Café? Não obrigado. Rapidamente é estendido um lençol na porta que dava para a cozinha. O projector (8mm?) é instalado sobre a mesa. Apagam-se as luzes.

O filme do Eisenstein começa a correr. Imagens saltitantes sobre um lençol branco e com vincos. Som não havia ainda. Bastavam as imagens e o ritmo. Cinco pessoas a absorver o proibido, o cinema em estado bruto!

Depois, algumas palavras sobre o filme, entre nós. Claro que lá fora só se podia dizer o que lia nas revistas escassas que nos chegavam. Saída para a noite, nós primeiro, o Graça mais tarde.

Foi a primeira vez que vi o Potemkine! E sem som. Mais tarde, em Paris voltei a ver cópias em 16mm e com música.

Cinema? Cinema é imagem em movimento. Cinema é ritmo. Ficaram gravadas na minha memória cenas do couraçado. Imagens de revolta. Marinheiros e luta. Mas sobretudo aquela cena da escadaria.

Com som ou sem ele, gostaria de voltar a ver o filme, em dvd ou numa sala sem pipocas. 

29 julho 2010

LEVALLOIS


Durante os vinte e tal anos que vivi em França vivi sempre em Paris com uma breve excepção que foi Levallois.

Já estava a trabalhar na Melexp de maneira regular e tinha obtido a “Carte de séjour” e a “Carte de Travail” – obrigado senhor Melidonian.

O Raul tinha-me arranjado um contacto com um amigo que trabalhava na MNEF. Era um tipo simpático, já não me lembro do nome dele mas um dia, mais tarde, encontrei-o nos corredores da Embaixada. Demasiado rápido para lhe poder falar.

O importante é que eu regularmente ia lá passando e ele dava-me os endereços ou os números de telefone das pessoas que alugavam quartos (o meu salário não dava para mais).

Um dia contactei uma senhora ali para os lados de Denfert. O quarto era maravilhoso e pequeno com entrada independente e tudo, serventia de cozinha e de quarto de banho, era uma viúva de um oficial do exército russo (branco). Ao fim de muitas palavras a resposta foi um grande não pois andava à procura de uma menina! Nem a consegui convencer dizendo que eu também tinha sido oficial de infantaria.

Ao fim de várias tentativas lá encontrei um quarto em Levallois na rue Camille Pelletan. Fui visitá-lo com a sobrinha da proprietária num fim de tarde outonal com um grande luar. O quarto até era grande!

Tinha para para aí um dois metros de largura por três e tal de comprimento. Sexto andar mas eu tinha boas pernas. Uma mesa e um armário. Cama não havia! Cortinas também não. O papel da parede estava um pouco sujo. Retrete? Não muito longe logo ali à mão no fundo do corredor.

Aceitei! Ao descer ela apresentou-me a Mme Truche-Mouche, a porteira como sendo o novo locatário do quarto. Pelo caminho combinámos a questão da cama. Eu comprava a cama e descontava do aluguer. Quanto ao resto tudo o que lhe interessava era receber o “mandat” pelo correio e todos os meses. Ficou o negócio fechado.

Fiquei lá alguns meses. Poucos. Tentei pôr a coisa mais ou menos em ordem. Comprei a cama (e respectivo colchão) junto à Gare de l’Est e trouxe-a de táxi para Levallois. A rue Victor Hugo estava pejada de pequenos comércios. Comprei um canivete, uns metros de plástico para servirem de cortina, uma bacia plástica (lavatório e banca), pincel e tinta na drogaria.

Aos poucos fui-me instalando. A Jo ofereceu-me alguma louça que tinha a mais e foi lá um dia e achou muito bonito, também arranjei um camping-gaz. A vista do quarto era para as traseiras, para o lado do Sena, que só adivinhava nos mapas – nunca fui até lá na altura. Tinha os comércios todos à mão. O metro Anatole France também estava a uma distância razoável para um jovem.

A semana passava com aquele ritmo costumeiro: Casa – Metro – Trabalho. No tempo livre dava uma saltada a Paris para encontrar os  poucos amigos. Ao sábado, se não trabalhava, metia a toalha, o champô e o sabonete num saco plástico e 40 passos adiante entrava nos “Bains-douches Municipaux”.

Atravessava Paris de Norte a Sul para ir até Lourmel para ir trabalhar. Já noite chegava a casa e pouca era a vontade de sair. Antes de subir fazia as compras. A lâmpada suspensa no centro do quarto era a única luz que havia à noite. Arrumava um canto da mesa para poder escrever meia dúzia de linhas à família. Um transistor fanhoso dava-me um pouco de música.

De manhã, ia buscar água ao fundo do corredor. Lavava-me, ia despejar a bacia, afastava o plástico da janela. Um grande pátio e uma magnifica vista sobre uma estação de serviço. Ao fundo chaminés de fábricas. Saía para o frio, saía para a rua. Metro. Impasse Thoréton. Boulot.



(continua)

26 julho 2010

CONCERTO





Em 200X já estava há alguns anos a vender horas de trabalho contra “recibos verdes” na Instituição. Felizmente que trabalhava no Porto e a representação local ficava numa freguesia limítrofe de Cedofeita. Tinha a meu cargo a coordenação das actividades culturais da mesma. Na realidade tinha que elaborar um orçamento anual e nunca sabia exactamente do que dispunha no início do ano. O senhor representante da Sede dizia uma coisa e eu devia executar. Mas tinha um título bonito.

Lá para fins de Setembro, o senhor representante chamou-me ao seu gabinete e disse que para o prestígio da Instituição se devia celebrar condignamente o Natal. Assim uma coisa em grande. A D. Augusta, a representante fiduciária, bateu palmas. (sim, sim). Fiquei à espera da ideia. Ia sair da monotonia de uma reprodução de actividades em direcção aos clientes da Instituição. Seria um bolo-rei gigante para entrar no Guiness?

O tempo era curto, mas eu estava cheio de entusiasmo. Antes que eu começasse a ir mais longe nesse caminho imaginativo, o senhor representante avançou logo com a ideia de um Concerto de Música Clássica na época de Natal. Voltado para mim, e aplaudido pela D. Augusta embevecida, expôs a sua ideia! Sim, um concerto de Natal!

Rapidamente, profissionalmente, disse-lhe que era necessário encontrar um local. Que o átrio de entrada da Instituição era demasiado pequeno para acolher um quarteto de cordas que fosse. E eu ainda não sabia quanto podia gastar até ao fim do ano para promover novas actividades.

Não havia problema, ele já tinha tudo planeado. Uma igreja. A igreja da Lapa! Ele ia telefonar já a quem de direito para reservar. Isso fazia ele, o meu papel era de simplesmente contactar o Conservatório Municipal de Z e de arranjar preço com eles. O senhor Representante Local até já tinha encontrado o programa. Um Requiem. O Requiem de Mozart.

Ele não obteve a Igreja da Lapa para a data pretendida. Eu não encontrei um conjunto ao preço que ele queria pagar. Eu não cheguei a ser cúmplice de um Requiem em plena época natalícia.

21 julho 2010

Natal 1972




Os últimos natais não tinham sido nada agradáveis. O de 1969, um Natal de despedida, uns dias depois Mafra me abriria os braços e os portões. O de 70, aquele que passei em Santa Margarida em companhia da Companhia. Entre o refeitório e a messe dos oficiais. O seguinte tinha sido o meu primeiro Natal  em Paris, frio apesar da presença da Geta.


No Natal de 72 já morava com a C. H. Ela tinha ido passar o Natal com a família e eu não tinha sido convidado. 


O Abrantes do Carmo naqueles dias de mais ou menos Natal tinha ficado lá em casa.  Já não me lembro como foi a consoada. Já não me lembro em que dia é que foi.

Não havia televisor. Eu já estava na cama do quarto a ler. O Abrantes estava a dormir no sofá da sala.  Já era tarde na noite e de repente alguém bate à porta! O Abrantes assarapantado. Eu, espantado. Levanto-me. Abro a porta. 


Dois tipos desconhecidos. Um mais ou menos da minha idade. Um bem vestido. Um em mangas de polo.  Perguntam pelo Abrantes.do género: “ O Abrantes está aqui?” Ele calça os sapatos e põe os óculos. Chega-se à porta. Inquieto? Lança-se nos braços do mais velhote.


Onde está a minha netinha? Onde está ela? Pergunta o Félix.  O Félix ainda não conhecia a Angela.


Alguns minutos ali em casa. O tempo necessário para enfiar roupa quente e o Figueiredo contar que conhecia o número da porta, que tinha perguntado à Piedade onde era, que tinham subido os quatro andares, que tinha batido à porta. Que nos tinha encontrado.


Dessa vez eu tinha um Simca 1100 do Chevalier. Lá fui deixar o Figueiredo a Montholon e depois seguimos depressa até Paris XV. 


Era um daqueles grandes prédios com alguns tijolos na fachada. Saímos do carro e o Abrantes entrou num longo corredor, o corredor das “chambres de bonne”.  Quase no fim, bateu a uma porta à esquerda. Chamou pelo nome da sogra. Nós, os outros dois, calados, eu, com uma coisa assim na garganta. O Félix caiu nos braços da mulher. A netinha estava a dormir. 


Deixámos o Félix e regressámos os dois para a rua de Rivoli. O reencontro quase seria perfeito e o Natal feliz se a mulher do Abrantes não estivesse em Caxias.

sobre as minhas histórias e as memórias

Por vezes é ténue a linha de separação entre a realidade e a ficção.

Algumas das histórias que estão a ser contadas podem levar o leitor a levantar esta questão.

Isso acontece com a minha leitora preferida. Mas aos poucos tem vindo a aperceber-se que aquilo que eu conto corresponde às minhas lembranças e está muito próximo da realidade de outros tempos.

É verdade que começo a abrir as gavetas da minha memória, e não é simples uma pessoa recordar-se de tudo. E escrever assim não é fácil para um tipo que durante muitos anos da sua vida se dedicou a elaborar textos de caracter técnico. Ainda ontem ela ouviu pela boca de outros coisas que eu lhe tinha contado de outra maneira.

Mas atenção, leitor(a). As histórias publicadas têm mais ou menos trinta anos. Os crimes já prescreveram. O nome das pessoas, por vezes são alterados.

Para os factos mais recentes e por respeito para com as pessoas que se cruzaram comigo decidi criar uma nova etiqueta: Ficção!

Continuo a admirar a pachorra daqueles que passam por aqui regularmente. 

20 julho 2010

Não li, não vi, mas ouvi falar

Hoje, e no Porto!

Línguas viperinas afirmam por aí, por essas vielas, travessas e outros locais, que o autarca do Porto recusou atribuir o nome de José Saramago a uma rua da cidade invicta.

Pelo meu lado, só espero que não o façam a uma rua de forma bizarra como a rua Dr. José Augusto Seabra ou a uma rua em "U" como a rua François Guichard! 

Bem sei que o José Saramago não nasceu ou viveu no Porto, mas recusar o nome para homenagear um Prémio Nobel é ... (o espaço em aberto é para o leitor completar com a palavra que mais se apropria à sua própria opinião).

Chegar aos livros

Nous lézards aimons les... (Raymond Queneau)




Tinha praí uns 15 ou 16 anos, talvez menos. O ti Mário deu-me autorização de aceder à sua biblioteca.

O ti Mário era meu vizinho no 93, não sei se já disse que os vizinhos mais próximos  eram todos tis para mim, sobretudo os que me tinham visto nascer.

O ti Mário vivia, como a maior parte dos solteiros naquela época no apartamento da família. Passava os dias atrás de um balcão de uma loja das ruas centrais da cidade. Quando não havia clientes, abria um livro, pousava as mãos sobre o balcão e lia. Na altura, tinha mais trinta do que eu.

A biblioteca do ti Mário era uma parede inteira do seu quarto mais uma estante sobre o guarda-roupa. Eu tinha ali uma mina de literatura. Sobretudo de literatura portuguesa. Num primeiro tempo foram os clássicos, o Eça, o Garrett e o Camilo que abandonei tão rapidamente como o Herculano, depois começaram a ser todos os outros. Ele não me dizia nada. Eu entrava no quarto a qualquer hora, trocava um livro por outro.
Foi assim que descobri os neo-realistas que não eram falados no programa oficial, foi assim que descobri também as primeiras edições do José Gomes Ferreira.

Foi assim que li o que muita gente da minha idade não lia. E não só da minha idade. A biblioteca do meu avô tinha livros encadernados comprados aos fascículos, livros sem eira nem beira que não me interessavam. O meu pai lia os livros da colecção Vampiro com o carimbo da biblioteca dos Amadores de Pesca Reunidos, às vezes apareciam também lá em casa outros policiais. Mas nessa altura o meu pai já não trazia livros para casa e o meu avô já não estava cá.

Depois, depois toda a gente dizia que eu era um nulo em Matemática. Que devia ir para Letras. E fui. Passada rápida pelo D. Manuel II onde o António Salgado Júnior seguia rigorosamente o programa e não dava confiança aos quarenta e quatro ou quarenta e cinco alunos que se alinhavam diante do estrado durante 50 minutos. Na altura o Óscar Lopes era professor de Latim!

-         Breve parênteses, um dos raros episódios de que me lembro desse ano.

Da minha turma o Grego e o Latim estavam desdobrados. Uma manhã todos os do pequeno grupo estavam à rasca porque havia ponto trimestral de Português naquele dia.  Pedimos ao Óscar Lopes para nos dar umas dicas sobre o programa.

Ele olhou para nós com aquele ar tímido e disse-nos que não podia ensinar Português. Mas se nós tínhamos dificuldades que podíamos estudar durante aquela aula. Escreveu qualquer coisa no sumário do grande livro e pôs-se a trabalhar.

Depois saí do D. Manuel II, fui preparar o sétimo ano como “independente”. Para não me afastar muito de casa, para não me afastar muito da “minha” Cedofeita, inscrevi-me nos cursos nocturnos da Lúmen, ali junto ao Hospital Maria Pia. O outro dia soube que o Externato Lúmen tinha fechado definitivamente as portas.

Aí encontrei uma professora que nos ensinava o programa mas também acrescentava algo de diferente. Era a Drª. A. E, nós, alunos do nocturno também já mais interessados noutras coisas do que as crónicas do Fernão.

Zás!

E uma manhã. Paragem.

Paragem cardíaca, o ti Mário não tinha acordado. O cangalheiro instalou o corpo na saleta da entrada. A ti Lai passou muito tempo a chorar. Os amigos enchiam a entrada e a saleta. Foi um cortejo de fatos pretos a subir e a descer a escada.

Os gatos pingados tiveram alguma dificuldade em descer o caixão pelos patamares estreitos.

O tio Mário ficou em Agramonte num mês de Março. No fim da tarde, tive aula de Português. Senti uma lágrima por trás dos óculos verdes. Tentei disfarçar com a mão na cara.

Depois, já não me lembro bem porquê – penso que foi aquela questão de haverem cursos mistos (homens e mulheres na mesma sala de aulas) – e as aulas recomeçaram mais acima na rua da Boavista no Colégio Universal. Tenho a impressão que foi aí que conheci o Dario.

E os cursos continuaram. Normalmente. Hoje, ao fim destes kms todos digo que fiquei apaixonado pela minha professora de Literatura Portuguesa.

Eu continuava a devorar a biblioteca do ti Mário, ia passando do Manuel da Fonseca ao Aquilino com o Cardoso Pires pelo meio. Nunca me interessava muito pelo Manuel Bandeira nem pelo Erico Verissimo, mas tentava perceber a realidade relatada pelo Jorge Amado. Sublinhava a História da Literatura do António José Saraiva e do Óscar Lopes. Lia o O’Neil e tinha como livro de cabeceira a Praça da Canção. Deixava de lado as antologias. Lia igualmente os Manuais de Filosofia e mergulhava nos Compêndios de História.

Falava-se nas aulas, por vezes, dos autores mais modernos. A professora tentava falar um pouco das correntes estrangeiras, dos escritores sobretudo europeus. Sei que a professora um dia me emprestou um dos livros da Beauvoir (por isso a referência ao Queneau que aparece em sub-título) em edição brasileira pois a portuguesa ainda demoraria anos a chegar. Já não sei se foram os Mandarins ou a Convidada.

Duas ou quatro vezes nos encontrámos naquela confeitaria ali na praça da República, em frente ao Café Novo. Foi graças a ela que também li pela primeira vez em português o Segundo Sexo. Em edição brasileira. Eram livros caros, na altura eu não podia chegar a eles. Foi também ela que me permitiu ler o Admirável Mundo Novo.

Ela era quinze ou dezasseis anos mais velha do que eu. Eu era um puto, pensava como um puto. Pelo meu lado foi tudo muito platónico.
Uma tarde, já fazia escuro. Sentados numa mesa junto ao vidro da montra que dava para a rua da Boavista. Ela enfiada num casaco três quartos cinzento, de espiga. Eu a olhar para os seus dentes através o fundo do copo. Devemos ter trocado de livros. Sem dúvida que eu estava influenciado pelos existencialistas. Ousei dizer-lhe.

Disse-lhe que gostaria de viver em Paris, de conhecer outra realidade, de saber como era. Tudo num tom muito sério. Penso que os filmes que eu via no Batalha adubavam esse meu sonho. Gostaria de lhe dizer mais coisas, talvez quando ela saísse do Colégio mas havia um senhor que a vinha buscar num ID 19. Devo ter fabulado coisas e situações. A Dra. Adília voltou-se para mim e disse que eu era um diletante! Que eu nunca seria mais nada que um diletante, que eu nunca iria a Paris e ainda menos lá viver. Assim com um sorriso. Respondi que não, que talvez um dia tentasse fazer qualquer coisa como isso.

O ID 19 continuava a ir buscá-la no fim das aulas com um senhor de óculos de massa e escuros. Eu regressava ao 93 descendo a rua e depois na esquina da minha despedia-me do Artur Jorge que seguia até à rua da Ponte Nova.

Fiz a disciplina no final do ano. Deixei de ver a professora. Um dia, nas minhas andanças pelas tardes ociosas, entrei com o Aguinaldo noa Primus. Ela estava lá. Com chávena e livros à frente. Cumprimentámo-nos.  Falámos de banalidades. Fui tomar café com o Aguinaldo.

19 julho 2010

Mon Oncle d’Amérique




Faltavam-me ainda algumas horas para me encontrar com o Manuel. As voltas à volta da praça de Londres já me cansavam. Por acaso descobri que mesmo ali na Guerra Junqueiro passavam um filme do Alain Resnais. Tinha mais que tempo para ver o filme e para chegar a casa do Manuel ali para Benfica.

Lisboa estava a chegar ao fim. Só mais umas horas e a estrada esperava-me para mais uma etapa até ao Porto. Resolvi ir ver o “Mon oncle en Amérique”. E tinha a vantagem de ser uma versão original, como sempre legendado em português.

Fumei o último cigarro, entrei e como de costume encontrei um lugar na cochia. Tentei arranjar uma posição confortável. Há anos que não ia a Lisboa, praticamente já tinha resolvido os detalhes mais importantes que lá me tinham levado. Pus-me em mangas de camisa e fiquei a olhar para a tela, à espera.

Sinto uma presença no corredor e ouço um olá! Surge a Paula com um sorriso. Está ali com os pais e com o Hernâni, o namorado. Tinha-os encontrado no fim-de-semana anterior em casa da T e do marido. Volto-me para trás e aceno ao Hernâni, havia um espaço entre ele e um casal de velhotes simpáticos e sorridentes. E o Hernâni correspondeu.

Durante uns minutos a Paula ficou a falar comigo ali agachada. Tínhamos andado em bando por bares e jardins de Lisboa, em lanches e em jantares. Ela era jovem e sorridente, o Hernâni tinha trabalhado parte do domingo. Perguntou-me como eu estava. Quando partia para Paris. Agradeceu-me o almoço que tivéramos ali junto do jardim das Amoreiras.

As luzes baixaram para começarem os anúncios na tela.

A Paula levantou-se, já só com o feixe do projector a atravessar a sala e deu-me um beijo na boca.

Saí a correr do Londres pois já estava atrasado, não tinha tempo para ir beber uma imperial com eles à Mexicana.

Trocámos correspondência, cartas e postais, durante meses. Ficou chocada por eu lhe ter dito que a minha cidade era Paris. Mandou uma frase de contente pelo Mitterrand ter ganho as eleições presidenciais. Chegou-me a pedir boleia até Paris nas férias mas não chegou a concretizar-se. Mandei-lhe umas fotos do grupo em Montes Claros. Numa das últimas cartas que me enviou anunciava-me que resolvera fazer a viagem a Paris com o marido da T.

Em Outubro voltei a estar em Lisboa. Encontrámo-nos junto a um fogareiro de castanhas ali perto da estátua do Marquês. Entrámos numa confeitaria. Os cinco miúdos que me acompanhavam não estavam nem quietos nem calados.

Não lhe fiz perguntas. Ela contou que tinha passado no mês de Setembro em Paris e que tinham ficado num hotel onde havia ratos ali perto do metro Cadet. Ela tinha a minha morada, devia pelo menos saber o nome da rua onde, na altura, eu morava. Ainda a convidei a vir connosco até ao Cacém – disse que não estava disponível. Despedimo-nos já no metro como dois amigos. Não lhe cheguei a contar que tinha encontrado em Paris o marido da T. com uma secretária suíça e jantáramos juntos.

Ainda me lembro do nome da aldeia de origem dos pais da Paula!


(Encontrei, há uns dias, no meio das minhas cartas pessoais a troca de correspondência da altura) 

18 julho 2010

Amália Rodrigues e Camilo Castelo Branco




Mais uma história improvável no espaço e no tempo

Aviso à plácida leitora e ao plácido leitor: apesar de todos os improváveis, que nada têm a ver nem com o convento de Monchique ou outros lugares do Porto, a história é verdadeira. Por uma vez, o escriba deste blogue aparece como personagem (n. f.) central.

Numa noite invernosa difícil agora a situar no mês e no ano exacto a equipa dos docentes de Vitruve decidiram escolher um restaurante ali para os lados da Place d’Aligre para jantarem com o Henri Ourman, Inspector da Academia de Paris.

Os dez ou doze que éramos comeram bem e acompanharam a refeição com um vinho que merecia o apreço geral. Também houve alguns que preferiram beber só água, mas ninguém se opôs! Passados todos estes anos já não me lembro do menu mas sei que o que se comeu era fino e saudável. Sem dúvida algo que tinha a ver com a cozinha regional do sudoeste francês.

Depois dos cafés, já prontos para regressarmos aos nossos respectivos e diferentes lares, já com as botas a morderem a beira do passeio, o Inspector lança-nos os repto de nos oferecer um “coup d’étrier” pois  ainda era cedo e no dia seguinte não se trabalhava. Convite aceite!

Direcção: Rue des Canettes. ( Não quero desbobinar  agora e aqui tudo mas o “Chez Georges” conheci-o logo nos primeiros tempos de Paris, eu e o Raul íamos lá, à noite comprar uma lata de ravioli ou um litro de Kiravi. No andar térreo era uma mercearia, assim ao lado direito, quase em frente à porta havia uma escada com corrimão em madeira para a cave. Também havia um objecto fabuloso – um juke-box em madeira. Ficava sempre com os olhos dependurados nele. Discos de 45 rpm. Daqueles que eu conhecia alguns e doutros que gostaria de ter ouvido mas era mais importante a alimentação nocturna de dois vadios)

Lá seguiram as três ou quatro viaturas até à proximidade de Saint-Sulpice.  O Jean-Marc abria a marcha e os outros com medo de se perderem.

Depois de estacionados os carros na proximidade, na altura era fácil, lá nos encontrámos diante da porta de um restaurante húngaro, quase em frente ao Chez Georges. A porta (azul?) estava fechada e o restaurante sem luz. O Henri, conhecedor, abre a porta e dirige-se para a escada de acesso à cave. Música! Fala com um empregado.

Uma mesa perto do minúsculo palco foi-nos dada. Puxa banco daqui, trás banco de outro sítio lá nos conseguimos instalar.

No intervalo – os músico também tinham que descansar e molhar as goelas – o cantor vem cumprimentar o nosso Inspector. Apresentação geral dos membros da equipa. Quando chega a minha vez, mais uma vez, o português de serviço. O homem, de camisa larga, jubila. Oh! Mas Portugal! Ele tinha um sotaque da Europa Central. Portugal? Ele tinha no seu repertório uma canção da Amália Rodrigues!

E eu que não gostava da Amália, e eu que continuo a não gostar da Amália Rodrigues! A conversa e o intervalo continuaram. 

Continuámos a beber e a conversar baixo. A música recomeça. A pautas tantas lá vem uma da Amália com sotaque do Leste e ritmo cigano.

Durante a canção, da posição em que estava vejo descer as escadas de calcário uma personagem com um bigode camiliano, de fato negro debaixo de uma capa longa.

Pensei que a mistura do Kir, do tinto e do que estava a beber me estava a beber... me tinha causado alucinações! O Camilo Castelo Branco fazia uma aparição no momento em que um fado enchia uma cave de Saint-Germain.

Foram três ou quatro pessoas que se instalaram ao lado dele lá ao fundo, do outro lado da sala. No intervalo seguinte o anfitrião do sítio foi-me apresentar ao “Camilo” – deux portugais qui se trouvent sous mes  voutes avec Amália et sa musique, fantastique!

Há umas horas atrás contei este episódio à C. T.  Depois falámos um pouco das coincidências. Ela não queria acreditar.

Jurei a pés juntos da veracidade da coisa. De repente, lembrei-me de ter lido, de ter ouvido na rádio que o Mário Barroso tinha participado como actor, num filme do Manoel de Oliveira.

Saltei para a Net! Pesquisa rápida. Sim, era verdade. Francisca? Agora falta saber se ele teve cenas filmadas em França.  As datas coincidem! Teria sido mesmo verdade o que me aconteceu numa noite ali na rue des Canettes? Reencontros lusófonos num espaço parisiense?

16 julho 2010

Reencontros

Aqui há umas semanas, ali para o lado da Figueiroa, cruzei-me como António Alberto. Como ele olhou para mim, sorri. Olhei-o nos olhos.  Não parei pois ia com a C. T. Pouco tinha mudado nos últimos quarenta anos. A principal diferença eram os cabelos mais longos e brancos. Fiquei convencido que ele não me conhecera. Com mais dez ou doze quilos, com mais rugas e barriga, mais ou menos pelos brancos na cara, penso que estou muito diferente.

Dias mais tarde, semanas talvez, ao sair do meu fornecedor de pregos de nicotina que se encontra ali quase à esquina de Sacadura Cabral. Re-boum! Ele também ia acompanhado. Desta feita, parei.
És o António Alberto!

O tipo muito pronto: E tu és o Teodósio!

Seguiram-se as frases habituais do onde moras, temos que tomar café, abraço, etc.

Porra, o António Alberto reconheceu-me ao fim de mais de quarenta anos. Sei bem que tínhamos frequentado as carteiras do Meireles com Grego e Latim pelo meio e também aulas de Literatura Portuguesa na Lúmen. Das noites e tardes a rever matéria no Estrela, dos encontros na UNICEPE.

Um dia destes tomaremos um café!

Eu pensava que estava muito diferente, parece que não estou!  Estou mas é velho.

Por vezes, as pessoas não falam umas com as outras, vamos lá saber porquê. 

Como eu dizia o outro dia à Maria B.: O mundo é muito pequeno e o Porto é como um pires de café!

15 julho 2010

O Cinema e as coincidências



Hoje.
Circunstâncias várias levaram-me a pensar que devia criar uma nova etiqueta: O Cinema e eu.

Claro está que só as minhas memórias, espalhadas por diversas gavetas davam um blog.

À tarde, disse à Maria, com dois cafés à frente, que muito tinha aprendido durante dois anos sobre um capitulo que me faltava. A projecção em 35 mm! Aquela a sério, onde as caixas podem chegar a tempo ou ... então é a angústia (antes do jantar). Durante dois anos participei, vi, mas não toquei na película!

A bobine certa para a máquina que existe! A rebobinadora. O martelo para acertar a película! A janela adaptada ao formato.

Tanta coisa! Mas tem que ir devagar, muito devagar. Do nove e meio projectado sobre um lençol numa parede do 93 até ao 70 mm projectado no imenso écran do Coliseu. Já não vos digo, agora, que também passei pelo papel de figurante ou de arrumador num cinema ali para os lados de Saint-Séverin.

Muitos kilómetros, cinquenta e tantos anos.  Andar de projector no carro, levar o cinema onde ele devia ir.

E continuo um diletante!

Coincidência!

Na altura em que o país celebra os 100 anos do nascimento do senhor Henrique Alves Costa. E tanto silêncio.

Na altura em que se morrem os cinemas – as salas de cinema – na cidade do Porto. E tanta indiferença.

E eu considero-me cúmplice! Com a idade, com esta mania que eu tenho do conforto e da qualidade. Agora, cinema, só filmes escolhidos a dedo pela C. T. Da forma mais simples. Encomenda pela net (teia para os puristas), formato circular, suporte plástico, manipulação mínima! SOFÁ! Stout e cinzeiro à mão.
Assim vai a vida!

13 julho 2010

CALÇAS

Ou como não era fácil a vida nos meados dos anos 60 no Porto.

Comecei a ler “Pessoas, animais e outros que tais” (ISBN 989-625-085-5). Lá por volta da página quarenta, o Pedro faz uma alusão ao Jorge Lima Barreto quando da sua passagem na cidade do Porto.

Para quem não viveu nesses tempos, para quem nunca se apercebeu como era difícil viver num Porto burguês e fechado como o dessa altura, não sabe que o Jorge Lima Barreto foi o primeiro homem no Porto que andava na cidade de calças vermelhas. E posso vos garantir que tal atitude não era nada fácil. Os basbaques ficavam mesmo a olhar para as calças nas ruas da Baixa do Porto.

Existia na mente das pessoas um certo número de preconceitos difíceis de abater.

O ensino misto tinha deixado de existir nos liceus e nos colégios. Lembro-me de a Sala de Estudo Lúmen ter sido encerrada durante semanas ou meses porque os rapazes e as raparigas tinham aulas do antigo sétimo ano, juntos.

No espartilho social e ideológico era bem apertado. Espantem-se gentes que só têm memória do século XXI! Há quarenta e cinco anos atrás, as raparigas não podiam andar de calças compridas nos estabelecimentos do ensino oficial. Muitas vezes, no inverno, vestiam uma saia por cima das calças. As meninas do Liceu Carolina de Michaellis andavam fardadas com uma bata azul. Lá também era proibido o uso de calças às alunas.

Na sua autobiografia “ Foi Assim” ( ISBN 978-989-622-113) a Zita Seabra (a), que ainda tinha os cabelos longos, conta-nos que a sua primeira luta política foi o movimento que se gerou naquele liceu para que as alunas pudessem assistia às aulas com calças compridas.

A vida não era um mar de rosas, com calças ou sem calças naqueles meados dos anos sessenta do século XX. Eu sei que alguns até saõ capazes de dizer que naquele tempo a juventude podia e sabia divertir-se!




(a) - Na altura era dirigente da Comissão Pró Associação dos Estudantes do Ensino Liceal do Porto.